O ÔNIBUS ERRADO

por Daniel Galera

Eu nunca devia ter visto aquilo. É... se não fosse por aquele arranjo sacana do acaso, nada disso teria acontecido, as coisas teriam continuado como sempre foram. Se há algo próximo a um Deus que influi em nosso destino, é a coincidência. Hoje sei disso. Tudo é acaso.

Mas o fato é que eu sempre a via como uma criança. Nada mais que uma menina, dotada de todas as características graciosas comuns a todas as outras meninas, sobretudo a inocência. Não havia desejo. No máximo, eu imaginava como ela estaria dali a dois ou três anos, com o corpo já provavelmente adulto. Não via nela nenhum apelo erótico. Isto era algo, a voluptuosidade, que eu encontrava em abundância nas minhas amigas e colegas de colégio, todas com os mesmos dezessete anos que eu, no seu ponto exato de maturação, algumas já dando, mas a maioria pelo menos já beijando com ousadia e desenvoltura. Descarregava todo meu ímpeto sexual nelas, minha colegas. Mas ela? Nela não havia nada de sexual, nunca houve. Tinha três anos e pouco a menos que eu, o que na nossa idade faz muita diferença, todo mundo sabe. Era uma menina. Era, até o dia em que aquilo aconteceu.

Foi depois daquele incidente que comecei a percebê-la de maneira diferente. Eu tentava, e juro que me esforçava mesmo, voltar a enxergá-la como uma criança. Mas ela nunca mais seria uma menina a meus olhos. Foi como se de uma noite pra outra alguém tivesse matado, desaparecido com aquela menina que eu estava acostumado a ver quase que diariamente e, no seu lugar, no exato papel que outrora a menina ocupava neste mundo, tivesse colocado uma fêmea. Um corpo. Um corpo pequeno, porém maduro, coberto de encantos antes despercebidos.

De uma hora pra outra, portanto, foi que passei a desejá-la. Obviamente lutei contra isso, pareceu-me de início doentio e perverso excitar-se com ela. Mas como eu disse, foi uma conspiração do acaso, fui pego de surpresa e não pude lutar contra nada disso.

Logo nos primeiros dias reservava-me a observá-la, como que pra ter certeza de que meu desejo não era loucura. Acompanhava-a com os olhos nos momentos casuais, descontraída e desavisada a respeito da minha vigilância. Como era possível que um sentimento tão vivaz, erótico e até certo ponto predatório surgisse em mim de forma tão arrebatadora? Mas não cheguei a ficar assustado. Pra mim, havia uma coerência natural em meus sentimentos, julgava-os saudáveis, compreensíveis, e de certa forma sagrados. Então prossegui por dias observando-a inescrupulosamente, não procurando em nenhum momento estancar o desejo que se anunciava em mim.

A coisa começou a ficar séria. Eu pensava nela com cada vez mais freqüência, e os pensamentos tornaram-se mais e mais obscenos. Não demorou muito para que eu tivesse sonhos eróticos, dormindo ou acordado, tanto fazia, com aquela que há dias atrás eu via como uma criança, distante de qualquer coisa a ver com sexo. E com o tempo comecei a ter delírios maníacos nos quais eu encontrava formas de beijá-la, maneiras absurdas através das quais poderia abraçá-la, deitar numa cama com ela. Imaginava o que ela fazia com os carinhas da idade dela, se é que fazia alguma coisa. Mas a cada dia o corpo dela me parecia mais tentador, mais experiente. Todo traço de criança foi se extinguindo. Sobrou um ser puramente sexual no seu lugar. Entretanto, continha meus impulsos e continuava, a muito custo, convivendo com ela no esquema inocente de sempre, conversas tolas, algumas risadas, e breves ocasiões em que tinha a chance de tocá-la inofensivamente.

Então um dia perguntei pra ela se ela já tava ficando com os caras, beijando coisa e tal. Ela respondeu que nunca tinha beijado, e que não sabia como fazer. Eu disse que era simples, fácil. Ela não chegou a dizer "me ensina", mas me olhou como se dissesse. Então dei um beijo na boca dela, tão breve que mal senti. Imediatamente depois, recuei e procurei dissimular o meu pavor. Não acreditei no que tinha feito. Olhei pra ela esperando que gritasse, chorasse, me reprovasse de alguma maneira, mas não, ficou ali me olhando, ela, com a cara mais normal do mundo. E então ela disse de verdade: "Me ensina?". Não me movi. Estava absolutamente confuso, nada daquilo fazia sentido, mas o que aconteceu é que agora ela é que estava me consolando e explicando: "Não tem problema. Não vou contar pra ninguém. Não precisa ter medo". Continuei com o pé atrás, incrédulo, de certa forma humilhado, mas ela disse algo que selou o pacto: "Eu quero". Entendi o que se passava na sua cabeça.

Beijei ela de novo. Devagar, como se ela pudesse se desmanchar a qualquer movimento brusco. Ela me pareceu, e até hoje parece, pequena, frágil, mas não ingênua, isso não. Ficamos ali trocando beijos pueris por alguns minutos. Depois, sem palavras, saí.

E aconteceu de novo, várias vezes. Ninguém ficava sabendo. Ela queria que eu "ensinasse" ela a beijar. Que "ensinasse" carícias. Eu ensinava, a gente se reunia em segredo, e isso acabou nos unindo rapidamente, nossa convivência se tornou silenciosa e repleta de um respeito inédito. Hoje isso prossegue. Ela sai com os caras da idade dela, fica com os colegas dela, eu continuo agarrando as minhas. Mas de vez em quando a gente ainda se encontra a sós e fazemos coisas. Como se o mundo girasse em torno de nós, em torno do nosso segredo.

Nada disso teria acontecido se não fosse, como eu disse, por um certo capricho do acaso. A primeira causa de tudo foi que peguei o ônibus errado. Por distração, em vez de tomar o ônibus que me levaria até a aula de guitarra, peguei a linha que uso pra ir para casa. Só me dei conta no meio do caminho, e naquela altura decidi ir até o fim pra casa, estava cansado mesmo e até que veio bem a desculpa pra passar a tarde no quarto vagabundeando. Acontece que era terça-feira, exatamente o dia em que minha mãe saía pro seu curso de cerâmica, de forma que minha irmã menor passava a tarde inteira sozinha em casa.

Cheguei em casa consciente disso, mas nada poderia ter me preparado pro que eu ia encontrar. Usei minha chave e abri a porta discretamente. Demorei pra perceber o que se passava, mas um sábio instinto garantiu que eu permanecesse em absoluto silêncio. Minha irmãzinha - a criança, a menina - estava deitada no tapete da sala, logo em frente da porta de entrada atrás da qual eu me escondia, completamente pelada com exceção da calcinha, por baixo da qual ela se dedilhava, o corpo tensionado, os olhos fechados, ignorando a minha presença. Aparentemente ela havia preparado tudo aquilo com certo cuidado, o rádio estava colocado por perto tocando uma de suas baladas favoritas, as almofadas do quarto dela rodeavam-na ali deitada no tapete, nosso conhecido tapete da sala, sempre cultivado por mim e por minha irmã devido à maciez aconchegante de suas cerdas altas. Naquele tapete a gente às vezes dormia no inverno, brincava ou rolava travando lutinhas inofensivas, era um símbolo de nossa infância. Mas agora via ela ali sozinha, aproveitando a situação de rainha da casa para entregar-se algo que eu nunca imaginaria, nem a muito custo, nem que me contassem, minha irmã de catorze anos masturbando-se sofregamente.

Fiquei olhando até o fim, completamente chocado. O que eu contemplava era pra mim uma coisa totalmente nova, um golpe na minha própria inocência, um tremendo susto que em última instância me deslumbrava. Em certo momento ela tirou a calcinha, e não estava estudando-se nem nada, ela sabia plenamente o que fazia, enfiava entre as pernas um dedo, o outro, rolava, contorcia-se, e eu queria parar de observá-la, afinal era um intruso indecente da sua intimidade, mas era impossível, por razões naturais e tendências comportamentais maiores do que a minha vontade. Por alguns minutos, e até o fim, olhei praquilo tudo, e minha irmã representava agora outro ser, tinha outro significado no meu mundo, tinha peitos recentes porém muito mais fartos do que eu já tinha notado, tinha graciosos pêlos escuros, bastante anunciados, tinha volume nas coxas e quadris já desenhados, tinha uma pele brilhosa, jovem e irretocável, mordia os lábios e gemia de prazer como as gurias da minha idade, notei todas essas coisas sem nenhum pudor, enfim. A partir daquele momento, tudo o mais aconteceu sozinho, além do meu controle. Mas mesmo depois que passamos a ter relações íntimas, nunca contei pra ela sobre aquele dia em que a surpreendi sobre o tapete.

Minha irmã cresce depressa. Tenho acompanhado isso de perto. A gente se respeita e é feliz com nosso segredo, a gente se ensina todas as coisas. Embora passe logo, tem momentos em que algo me diz que isso é um grande engano, principalmente quando estamos os dois reunidos com o pai e a mãe, na mesa da janta ou algo assim. Mas como eu disse, foi tudo culpa de uma coincidência. Se há culpados nessa história, culpem o acaso.