A Voz do Dono
Fabricando o consenso: o caso Ford-RBS
Jorge Furtado
Não tem precedentes a campanha movida pela RBS para que o governo do estado entregue o máximo de dinheiro público possível para a Ford. Há uma guerra na Europa, duas CPIs no senado, banqueiros e juizes apanhados saqueando cofres públicos e a Zero Hora, nos primeiros quinze dias de abril, deu dez manchetes de capa sobre o assunto, todas com o mesmo sentido: enfraquecer o governo do estado do Rio Grande do Sul na queda de braço com a Ford pela instalação da fábrica no estado.
Recapitulando, para quem é de fora. Nos quatro anos de governo de Antonio Britto (94-98), a RBS comprou parte da companhia telefônica e de energia elétrica (que Britto havia prometido, em campanha, não privatizar), atropelou o conselho de cultura para arrecadar verbas para suas promoções (como o show de Roberto Carlos e Pavarotti), ficou com a maior fatia da gigantesca verba publicitária do governo, 69 milhões de reais só no último ano (a maior verba de publicidade de um governo de estado no país). Este mesmo governo Britto, tentando produzir um fato político que ajudasse sua reeleição, entregou mundos e fundos públicos para que a Ford e a GM viessem se instalar aqui, concretizando o que a RBS chamou até gastar de "o sonho da montadora". Os contratos só se tornaram públicos na justiça, por ação da bancada estadual do PT. O motivo para tanto sigilo ficou claro: o estado se comprometia a entregar tudo e mais um pouco à GM sem exigir garantia alguma. Como diz FHC, não vamos entrar em tecnicalidades mas, para se ter uma idéia de como o poderoso estado do Rio Grande do Sul foi bonzinho com a coitadinha da General Motors, só o (nosso) dinheiro adiantado um ano antes do início das obras, rendeu de juros para a GM duzentos mil reais por dia. No mesmo período as indústrias agropecuária e coureiro-calçadista gaúchas desempregavam milhares de pessoas por falta de financiamento. Mas, apesar do carnaval publicitário pré-eleitoral, a moleza acabou na derrota de Britto na eleição. Olívio assumiu e quer renegociar os contratos, em condições mais vantajosas para o estado. Mas a Zero Hora não quer deixar.
Por incrível que pareça, a RBS e a oposição estão se revelando mais capitalistas que a Ford. Todos os dias, nos vários programas das várias rádios e tevês da rede, Buzzato, Proença e companhia esbravejam que os contratos são inegociáveis, que se não dermos tudo que prometemos para a Ford eles irão embora correndo para Santa Catarina ou para a Bahia e nós voltaremos para a pré-história. Só que a própria Ford admitiu que aceita renegociar os contratos. Claro que só ficou sabendo disso ("Ford admite renegociar contratos") quem leu o Correio do Povo. A Ford admite receber menos do que estava no contrato, mas a RBS e a oposição não querem deixar o governo do estado economizar o nosso dinheiro.
O novo lance da fabricação do consenso foi a pesquisa que virou manchete no dia 16 de abril, em ZH: 69,3% APÓIAM CUMPRIMENTO DE CONTRATOS COM GM E FORD.
A pesquisa, mal feita pela Universidade Federal e bem paga pela RBS, foi realizada nos dias 8 e 9 de abril. Que tal, para começar, dar uma olhada nas capas de Zero Hora naqueles dias? Dia 8: GM ameaça adiar produção e Ford dá prazo ao governo. Dia 9: Ford diz que tem outras opções para instalar fábrica.
Agora vamos ver as perguntas da pesquisa.
A primeira: o que você acha da vinda de grande empresas para o Rio Grande do Sul? Não é uma beleza esta pergunta? Me fez lembrar da velha máxima "é melhor ser rico e saudável do que pobre e doente". Não sei como, mas 6,8% dos entrevistados disse que é contra a vinda de grandes empresas para o estado.
A segunda: qual a sua opinião sobre a concessão de incentivos por parte do governo para que estas empresas se instalem aqui? 29,2% dos entrevistados disse que discorda. Nenhum incentivo? Nem um cafezinho, um tapinha nas costas, uma palavrinha de estímulo? Ou, quem sabe, a pergunta deveria ser: você concorda que o governo pague a construção das fábricas, abra mão do imposto por 10 anos, empreste 400 milhões do nosso dinheiro a juros ridículos sem nenhuma garantia para as duas maiores empresas do mundo?
A terceira: você acha que o atual governo deve manter os contratos de concessão de recursos com a GM e a Ford, assinados pelo governo anterior? Este foi o resultado que virou manchete: 69,3% responderam que sim. (O resultado já seria diferente se a pergunta fosse "você acha que o atual governo deve manter os contratos de concessão de recursos para a GM e a Ford, assinados pelo governo anterior?" Não que a formulação usada esteja gramaticamente errada, mas a pergunta põe sua ênfase em manter contrato com e não em concessão de recursos para). Uma pergunta adicional poderia ter sido colocada aqui: Você sabe o que dizem os contratos assinados pelo governo anterior com a GM e a Ford? O professor Theodore Moran, da Universidade de Georgetown, sabe. Ele é especialista em investimentos industriais de multinacionais e as disputas em torno dele e analisou as facilidades concedidas pelo governo Britto à GM e à Ford. "Nunca vi valores como esses", declarou à Isto É Dinheiro (21/4/99, pág.29). "A metade disso tudo já seria demais. Pelo que sei, é um recorde mundial".
A última pergunta da pesquisa é de uma subjetividade que lembra os testes da revista Capricho: você acha que a GM e a Ford têm condições de mudar para melhor a vida dos gaúchos? Eu acho que sim. E também para pior.
A formulação e a ordem das perguntas é decisiva para o resultado de qualquer pesquisa. Quem fez o questionário? UFRGS ou Zero Hora? Mais decisivo, no entanto, é a metodologia utilizada. Existem muitas maneiras de se induzir o resultado e o impacto de uma pesquisa. A da UFRGS/RBS usou pelo menos três delas.
1. Para começar, você sabia que esta pesquisa tem uma margem de erro declarada (que eles chamam de "erro amostral") de 4,2%? Não consigo entender como uma pesquisa com margem de erro de 4,2% pode ser publicada com resultados com frações decimais. O número 69,3%, dá uma idéia de precisão de décimos. Mas a margem de erro é de 4,2. É como se o seu arquiteto dissesse que a sua sala tem 6 metros e 18 centímetros e que a margem de erro da medida é de 2 metros. Mas isso é o de menos, quase todas as pesquisas (o Ibope é exceção) cometem este erro.
2. Por que uma pesquisa que se refere ao governo do estado, à possibilidade das empresas se instalarem no Rio Grande do Sul, aos incentivos que devem ser pagos com dinheiro de todo estado, foi feita só na região metropolitana? Os moradores de Livramento, Caxias, Passo Fundo, que vão pagar a conta, também não deveriam ser ouvidos? Será que a escolha da área pesquisada não se relaciona ao fato de ser a região metropolitana a mais favorecida pelas empresas?
3. Qual o critério de escolha das cidades? Por que, entre os 560 pesquisados (Nota: publiquei este texto originalmente considerando que eram 506 os entrevistados. Erro meu, foram 560. Isso não muda em nada as conclusões do texto, mas está feita a correção), foram ouvidas 78 pessoas em Gravataí e 75 em Guaíba? E nenhuma em Canoas, Viamão, Sapucaia, São Leopoldo, Esteio? Será que a escolha não se relaciona ao fato de serem Gravataí e Guaíba as mais favorecidas pela vinda das empresas? Quem determinou a área pesquisada?
A pesquisa, feita sob o impacto das manchetes de Zero Hora e com critérios duvidosos, para dizer o mínimo, vira fato incontestável na voz dos articulistas. "A pesquisa prova", que "a maioria esmagadora dos gaúchos" foram frases repetidas em todos os veículos da rede, desde o despertar com Rogério Mendelski (ainda mais anti-petista depois que perdeu o patrocínio do governo do estado ao seu programa) até o Conversas com o Buzzato, canal 36, às onze da noite.
"A voz das ruas" foi o título escolhido pela editora de política de ZH, Rosane de Oliveira, para o criterioso artigo onde afirma que "na falta de um plebiscito, o governador está recebendo um indicador que vai arder em suas mãos como carvão em brasa". A analogia é forçada. Um plebiscito, afoitamente sugerido por Olívio no calor de um comício, deve respeitar princípios básicos de representatividade, como numa eleição. Menos criteriosa é a nota "A Voz do Povo", de José Barrionuevo: "a pesquisa mostra a opinião de esmagadora maioria da população favorável à permanência da Ford, honrando os contratos assinados pelo Estado". Os moradores de algumas cidades da região metropolitana aqui já viraram "a população". A manipulação vai mais longe nas perguntas de Mario Sabino e Cristine Prestes, repórteres da Veja, em entrevista com Olívio (páginas amarelas, 28/4/99). Com ingenuidade ou má intenção, eles também escutam "a voz da sociedade" na pesquisa: "Recentemente duas pesquisas de opinião mostraram que 70% dos gaúchos querem que o governo cumpra os contratos com as montadoras. O senhor não acha que deve ouvir o que a sociedade está dizendo?". Não sei qual é a segunda pesquisa referida, mas quanto a de Zero Hora/UFRGS, a pergunta contém duas mentiras: não são 70%, são 69,3%, que deveriam ter sido arredondados na origem para 69 e não para 70. E não são os gaúchos, e sim os moradores de algumas cidades da região metropolitana, principalmente das cidades onde se instalarão as fábricas. (Veja assume o Padrão-Ratinho de Ética na pergunta final da entrevista: "O senhor não acha que à esquerda brasileira, ao institucionalizar-se, ficou distante do cotidiano das pessoas? Logo depois da anistia, em 1979, as questões comportamentais faziam parte da pauta de discussões. O senhor mesmo, em entrevista ao jornal altenativo Tchê, em 1981, falou sobre as suas experiências de juventude..." O contorcionismo da lógica é constrangedor. É uma pena que uma revista como a Veja desça a este nível).
Pesquisas, quando feitas com o objetivo de descobrir algo (e não de provar algo) e quando lidas com atenção (e não transformadas em manchetes simplificadoras) são um bom instrumento para auscultar a opinião pública. Mas convém não esquecer que, com todos os defeitos que possa ter, a melhor maneira de se ouvir a voz das ruas ou do povo continua sendo a realização de eleições por sufrágio universal, com direito de voto a todos os cidadãos, como a que elegeu Olívio e derrotou Britto. Pesquisas publicadas, em 98,3% dos casos, refletem apenas a voz do dono.