Freitas chegou ao jornalista quando, ao pesquisar matérias sobre o conflito em jornais platinos, encontrou, transcrito para o espanhol, no La Prensa, de Buenos Aires, um artigo de um certo A. Bierce. A descoberta levou o historiador à coleção do Tribune, na biblioteca de Nova Iorque. Mais, aos 62 cadernos que Bierce escreveu sobre sua temporada na América do Sul, 18 dos quais dedicados as suas aventuras no Rio Grande do Sul, abordando principalmente a guerra civil. E aí, em Nova Iorque, também o primeiro enigma: impossível saber, com exatidão, se o A. era de Ambrose. Os biógrafos não falam sobre a estada de Bierce no Rio Grande do Sul. O que, segundo Freitas, também não prova que não esteve. Mas isso é papo de historiador e Freitas intui que seja mesmo Ambrose Bierce pelo estilo da prosa, misantropa até a medula.
Quando chega a Porto Alegre, Bierce tem 50 anos e é veterano da Guerra de Secessão americana, onde serviu como voluntário no exército da União. Também foi correspondente em Londres, onde ganhou o apelido de “bitter”. Em junho de 1892 manda, via telégrafo, as seguintes informações (resumo):
b) fala-se na hipótese de uma secessão, o Rio Grande e o Uruguai formarão um único país;
c) a principal causa da instabilidade é a disputa pelo poder entre os dois caudilhos mais poderosos do Rio Grande do Sul: Júlio de Castilhos, líder do partido Republicano Rio-Grandense; e Gaspar Silveira Martins, líder do Partido Liberal, conhecido no Império como "rei do Rio Grande";
d) O senhor Castilhos e seus adeptos são fervorosos sectários das doutrinas de Augusto Comte, que prega a monocracia e a ditadura cientíca. Se o sistema prevalecer, o senhor Castilhos passará à história como o inventor de uma ditadura eletiva;
e) já entrevistei os dois políticos, e cheguei à convicção que não haverá acordo.
Mas a cidade, que segundo Bierce pratica a "estética da fealdade", também não é só amargura.Tem 20 consulados. Um ar cosmopolita, pois está cheia de estrangeiros: além do português, fala-se espanhol, italiano, francês, alemão. E, para a sua surpresa, pode comprar, em uma livraria da esquina, o Pall Mall Gazette, de Londres. Há muitos espetáculos no Theatro São Pedro, e as orquestras dos cafés tocam polcas, mazurcas, valsas, scottish e quadrilhas. Bierce também gostava de perambular até a casa de Apolinário Porto Alegre, no alto do Morro Santana, para discutir política, literatura, e depois comer churrasco e beber leite, provavelmente numa guampa. Também somos informados, na página 96, que, "como sempre acontecia quando dormia sem mulher Bierce masturbou-se antes de pegar no sono". Isto, claro, antes de comer a mulher do cônsul americano.
Também não escapou a mister Bierce "a inverossímil
beleza do lago sobre o qual se debruçava a cidade". A mesma beleza
que se percebe hoje, do 14º andar de um prédio na avenida Independência,
onde fica o apartamento de Décio Freitas. Aos 76 anos, sabe que,
com o O homem que inventou a ditadura no Brasil, colocou a mão
num vespeiro. Não se questiona um mito impunemente. E Freitas, a
partir da Revolução Federalista e da vitória do Castilhismo,
faz um elo de ligação de uma herança que passa
por Getúlio,
golpe de 64, e chega até os dias de hoje. Levou
pau de tudo quanto foi lado, com a serenidade de quem sabe não ser
o dono da verdade. O trabalho do historiador não é imparcial,
pois seleciona , interpreta documentos e constrói sua própria
versão. E nisso estão embutidos valores ideológicos.
E a Revolução Federalista, por si só, já é
um vespeiro: egalistas( chimangos), federalistas (maragatos); republicanos,
seccionistas, monarquistas; o envolvimento do Uruguai e da Argentina, como
asilo e também fornecendo combatentes para os dois lados. Muitos
interesses, barbárie com milhares de mortos, degolas, e o prazer
de matar.
A guerra civil gaúcha serve como prelúdio do que Bierce voltaria a encontrar na Revolução Mexicana. Esta participação inspirou o filme "Old gringo", de Luiz Puenzo, com Gregory Peck interpretando o jornalista. Bierce desaparece durante o conflito, em 1914. O que fez aumentar ainda mais a sua lenda. Teria morrido, ou, cheirando sangue do outro lado do Atlântico, corrido para a grande carnificina da Primeira Guerra Mundial? Será que existe, hoje, um Bierce, na guerra dos Bálcãs?
Bierce sobrevive na Internet, onde há varíos
sites a seu respeito, inclusive um retrato. E, traduzido para o espanhol,
trechos do seu "Dicionário Diabólico". Vale conferir.
Francisco Ribeiro
fcorib@mandic.com.br