Allen está surpreendentemente sexual neste seu filme. Em nenhum outro ele foi tão ousado em mostrar atos sexuais. Nada, porém, comparável a Tarantinos, Coppolas e Stones da vida. Woody Allen mostra suas mulheres se entregando no limite entre a perversão e a elegância. Esta mudança é explicável quando se pensa no elenco de Desconstruindo Harry: Demmi Moore e Elizabeth Shue, só para ficar com dois dos nomes mais, digamos, voluptuosos.
Tanta sexualidade cinematográfica deu margem a críticas a Allen. Primeiro se disse que o filme era o que tinha, entre todos, o maior caráter autobiográfico, uma vez que Allen, à época do lançamento, ainda sofria os ecos da separação com Mia Farrow. Depois se disse que o filme era uma referência ao escritor Phillip Roth, conhecido por seus livros, como direi, picantes e inegavelmente auto-indulgentes. Houve até quem dissesse que era moral ver Allen, do alto de seus 63 anos, beijando Elizabeth Shue.
O que é uma grande besteira (a crítica cinematográfica
não é imune a loterias opinativas, algumas até de
cunho esotérico!) porque Desconstruindo Harry é, em última
análise, somente uma ode à ficção e ao ato
de criar. Mesmo que o ato da criação artística esteja
tão entrelaçado com a vida real que muitas vezes acabe por
atrapalhá-la. É o caso de Harry Block, protagonista do filme,
interpretado por Woody Allen, um escritor que tem a péssima mania
de relatar, de modo muito pouco metafórico, sua vida sexual
nos livros. O que gera, obviamente, ódio entre aqueles que o
cercam e vêem suas vidas expostas num livro. A obra de Block, porém,
é muito mais do que um tratado de auto-voyerismo. É, antes,
uma tentativa de recriação, bem ao estilo de Deus. Pelo menos
o Deus de Woody Allen, que construiu um mundo perfeito à custa da
imperfeição. Block é um escritor que depende de suas
histórias para viver em paz com seu passado e presente invariavelmente
neuróticos de separações, culpas, medos, anseios e
toda aquela gama de
sentimentos que fazem a festa dos psicanalistas.
Quem está acostumado com as comédias anteriores de Allen
talvez estranhe a acidez e a melancolia do filme, igualáveis somente,
e talvez, a Crimes e Pecados. A risada que Allen desperta no espectador
é de comiseração e certo asco. Block tem defeitos
que fariam qualquer homem comum parecer o mais reprovável possível.
Mas ele tem um salvo-conduto que Allen eleva à décima potência:
é um artista. E o artista, Allen nos diz, pode tudo quando cria.
Neste contexto pode-se até ver uma aproximação entre
a vida de Harry Block e Allen, se se pensar que Block é julgado
pelos suas atitudes como homem, e não pela vida de seus personagens.
Um joguete interessante (e sarcástico) com o lugar-comum que nove
entre dez críticos, ao comentar os filmes de Allen, repetem, o de
ele está representando a si mesmo. Com Desconstruindo Harry, Woody
Allen parece querer provar que entre ele e seus personagens só
há semelhança fisionômica. E, caso haja mais do
que isso, decididamente não nos interessa.
O filme traz recursos interessantes do ponto de vista cinematográfico.
Numa era em que os efeitos especiais são o fim e não um meio
para se contar uma história, Woody Allen faz uso do melhor da computação
para criar uma alegoria genial: o do homem que, tendo tomado uma overdose
de si mesmo, fica fora de foco. Allen também faz uso de sucessivos
cortes rápidos que dão ao
espectador a exata dimensão da neurose de Harry Block. Ah, sim:
também estão lá a trilha sonora impecável (é
genial pensar em swing como música-ambiente no Inferno!) e Nova
York, numa fotografia exuberante, como pano de fundo.
Os supersticiosos esperarão até 2009 por mais uma obra-prima
de Allen. Já os menos crédulos de coincidências numéricas
em se tratando dos filmes de Woody Allen (mas crédulos de lendas
das distribuidoras e exibidores), esperarão menos. Reza a lenda
que Celebrity, filme estrelado por Kenneth Branagh e que conta com a participação
do neogalã Leonardo di Caprio, estreará em
setembro. Esperaremos. Sentados.
PAULO POLZONOFF JR
polzonof@sulbbs.com