Demolindo mitos woodyallenianos
por Paulo Polzonoff Jr
14/06/99 - 13:17
 
 
Para quem acredita em esoterismo barato (ou estaticite) há um bom motivo para assistir ao novo filme de Woody Allen que finalmente entrou em cartaz, depois de dois longos anos de espera. Claro, terá de fazer alguns ajustes para o cálculo cabalístico dar certo. Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry, 1997) é o melhor filme de Allen da década e, segundo os especialistas em numerologia, isto segue certa lógica numérica. Manhattan, o melhor filme de Allen da década de setenta, foi lançado em 1979; Crimes e Pecados, o melhor dos oitenta, foi lançado em 89; e Desconstruindo Harry, apesar de lançado em 1997, só agora, 1999, é exibido. Mas se você acha isto, como eu, uma besteira muito grande, vale dizer aqui que Desconstruindo Harry é um
filme de grandes méritos não-místicos.

Allen está surpreendentemente sexual neste seu filme. Em nenhum outro ele foi tão ousado em mostrar atos sexuais. Nada, porém, comparável a Tarantinos, Coppolas e Stones da vida. Woody Allen mostra suas mulheres se entregando no limite entre a perversão e a elegância. Esta mudança é explicável quando se pensa no elenco de Desconstruindo Harry: Demmi Moore e Elizabeth Shue, só para ficar com dois dos nomes mais, digamos, voluptuosos.

Tanta sexualidade cinematográfica deu margem a críticas a Allen. Primeiro se disse que o filme era o que tinha, entre todos, o maior caráter autobiográfico, uma vez que Allen, à época do lançamento, ainda sofria os ecos da separação com Mia Farrow. Depois se disse que o filme era uma referência ao escritor Phillip Roth, conhecido por seus livros, como direi, picantes e inegavelmente auto-indulgentes. Houve até quem dissesse que era moral ver Allen, do alto de seus 63 anos, beijando Elizabeth Shue.

O que é uma grande besteira (a crítica cinematográfica não é imune a loterias opinativas, algumas até de cunho esotérico!) porque Desconstruindo Harry é, em última análise, somente uma ode à ficção e ao ato de criar. Mesmo que o ato da criação artística esteja tão entrelaçado com a vida real que muitas vezes acabe por atrapalhá-la. É o caso de Harry Block, protagonista do filme, interpretado por Woody Allen, um escritor que tem a péssima mania de relatar, de modo muito pouco metafórico, sua vida sexual
nos livros. O que gera, obviamente, ódio entre aqueles que o cercam e vêem suas vidas expostas num livro. A obra de Block, porém, é muito mais do que um tratado de auto-voyerismo. É, antes, uma tentativa de recriação, bem ao estilo de Deus. Pelo menos o Deus de Woody Allen, que construiu um mundo perfeito à custa da imperfeição. Block é um escritor que depende de suas histórias para viver em paz com seu passado e presente invariavelmente neuróticos de separações, culpas, medos, anseios e toda aquela gama de
sentimentos que fazem a festa dos psicanalistas.

Quem está acostumado com as comédias anteriores de Allen talvez estranhe a acidez e a melancolia do filme, igualáveis somente, e talvez, a Crimes e Pecados. A risada que Allen desperta no espectador é de comiseração e certo asco. Block tem defeitos que fariam qualquer homem comum parecer o mais reprovável possível. Mas ele tem um salvo-conduto que Allen eleva à décima potência: é um artista. E o artista, Allen nos diz, pode tudo quando cria. Neste contexto pode-se até ver uma aproximação entre a vida de Harry Block e Allen, se se pensar que Block é julgado pelos suas atitudes como homem, e não pela vida de seus personagens. Um joguete interessante (e sarcástico) com o lugar-comum que nove entre dez críticos, ao comentar os filmes de Allen, repetem, o de ele está representando a si mesmo. Com Desconstruindo Harry, Woody Allen parece querer provar que entre ele e seus personagens só
há semelhança fisionômica. E, caso haja mais do que isso, decididamente não nos interessa.

O filme traz recursos interessantes do ponto de vista cinematográfico. Numa era em que os efeitos especiais são o fim e não um meio para se contar uma história, Woody Allen faz uso do melhor da computação para criar uma alegoria genial: o do homem que, tendo tomado uma overdose de si mesmo, fica fora de foco. Allen também faz uso de sucessivos cortes rápidos que dão ao
espectador a exata dimensão da neurose de Harry Block. Ah, sim: também estão lá a trilha sonora impecável (é genial pensar em swing como música-ambiente no Inferno!) e Nova York, numa fotografia exuberante, como pano de fundo.

Os supersticiosos esperarão até 2009 por mais uma obra-prima de Allen. Já os menos crédulos de coincidências numéricas em se tratando dos filmes de Woody Allen (mas crédulos de lendas das distribuidoras e exibidores), esperarão menos. Reza a lenda que Celebrity, filme estrelado por Kenneth Branagh e que conta com a participação do neogalã Leonardo di Caprio, estreará em
setembro. Esperaremos. Sentados.
 
 
PAULO POLZONOFF JR
polzonof@sulbbs.com