Dois leitores e futuros colaboradores de longa data reclamaram do petismo extremado do último número. (Para mim, uma reação orgânica ao anti-petismo extremado de outros órgãos da imprensa no período). Eles sugeriram que, se a gente fosse macho mesmo, um dos temas tratados no Não 63 deveria ser o Guaracy Cunha e o 500 anos de Brasil. Para quem tem o azar viver ao norte do rio Uruguai ou a sorte de não ler jornais, explico o caso: Guaracy é o secretário de comunicação do governo Olívio (aquele do PT, um de bigode, está meio grande, é verdade). Guaracy foi acusado - isto é, uma série de insinuações foram feitas nos jornais - de ter cometido algum tipo de imoralidade ou mesmo ilegalidade (as insinuações, em variados momentos e meios, tiveram variados tons) ao contratar, como secretário de governo, os serviços remunerados de uma empresa de produção de vídeo (Cooperativa de Vídeo) da qual ele foi sócio até o final do ano passado.
Só sei o que saiu no jornal, não ouvi nenhum
dos diretamente envolvidos no assunto, nem no rádio ou na tv. Todos,
governistas, oposicionistas e jornalistas, parecem concordar com o seguinte:
1. Guaracy era sócio da empresa.
2. Guaracy não é mais sócio da empresa
desde dezembro passado, antes de entrar para o governo.
3. Guaracy contratou a empresa.
Nem todos parecem concordar que:
1. É ilegal. (alguns oposicionistas)
2. É imoral. (todos os oposicionistas e alguns
jornalistas)
3. Não tem nada de imoral. (governistas)
4. Ficou muito chato. (alguns leitores do Não)
5. Do que vocês estão falando? (outros leitores
do Não)
6. O governo convidou outras empresas através
de cartas, mas só a ex-empresa do Guaracy preenchia os requisitos
técnicos necessários. (governistas)
7. Para favorecer determinada empresa, é fácil
exigir requisitos técnicos que só ela preencha. (oposicionistas)
8. Certamente no governo Britto era muito pior. (eu)
O Guaracy foi convidado para depor na Assembléia. Tudo indica que vai, na segunda, dia 31. (Escrevo na sexta, 28). Antes que ele explique mais - depois é fácil - aceito a provocação dos leitores (espero que, um dia, colaboradores) para dizer o que eu acho. Conheço o Guaracy o suficiente para confiar no seu bom senso. E mais do que suficiente para saber que ele não é idiota. Não encontrarão, e olha que eles vão procurar bastante, nenhuma ilegalidade no ato por um motivo simples: não há ilegalidade.
Quanto à moralidade - que falta fizeram estes jornalistas durante o governo Britto! - não vejo de que maneira ela teria sido ferida. Chegaram a afirmar que no tempo em que o Guaracy, filiado ao PT, era sócio da Cooperativa, a Câmara de Vereadores liderada pelo PT contratou a empresa e que isso seria imoral. Sugerem talvez que a Câmara exija que nenhum sócio de nenhuma empresa fornecedora seja filiado a nenhum partido político. Isto seria não apenas imoral mas, espero, ilegal. Ou voltamos ao tempo das fichas do DOPS?
Sugerem que a carta-convite pode ser um simples disfarce para legitimar uma escolha pré-determinada. Pergunto: por que o secretário teria interesse em favorecer sua ex-empresa? Num momento em que o governo é bombardeado por uma oposição que está vetando até a perfuração de poços artesianos, fustigado pela imprensa saudosa do generoso patrocínio governamental, no momento em que o próprio secretário assina carta à Zero Hora denunciando a manipulação de informações, contratar sua ex-empresa é, no mínimo, uma ousadia. Pois "a ousadia vira temeridade se não estiver estribada na prudência". (Parece frase do Olívio, mas é do Cervantes).
Imagino que a ousadia se deva simplesmente à urgência de registrar as atividades do governo. Trabalho há 18 anos com televisão e cinema em Porto Alegre e não conheço - talvez exista - outra empresa com as mesmas características da Cooperativa (com técnicos e equipamentos de gravação e edição em vídeo).
A idéia deste tipo de denúncia, é claro, não é realmente apurar a verdade. Mesmo que as explicações de Guaracy na Assembléia convençam até mesmo o Buzatto, anos se passarão e não vai faltar quem lembre do governo petista como "aquele que contratou uma empresa de vídeo que era deles mesmos". Não conheço os termos da tal carta-convite. Acredito que os esclarecimentos do Guaracy na Assembléia vão ser uma boa oportunidade para descobrirmos as diferenças nas relações do poder público com as empresas privadas neste governo e no anterior. Mas duvido que, por mais esclarecedor que possa vir a ser, seu depoimento aplaque a ira dos moralistas de temporada. Até porque a moralidade de um ato é sempre subjetiva. Certamente alguns leitores hão de achar imorais muitos dos conteúdos do Não. Eu acho imoral a coluna de José Barrionuevo. Sobre o assunto, ele publicou uma notinha com título "Pérola". Realmente é.
Pérola. Frase do secretário de comunicação Guaracy Cunha, em entrevista a rádio Gaúcha: "Não tem questão moral, não tem questão legal". É este o pensamento do governo?.
Com o título "Pérola", totalmente deslocada do contexto da tal entrevista, sem referência à pergunta que, imagino, foi feita ao Guaracy, a frase parece afirmar que para o secretário não existem questões morais ou legais, não apenas neste assunto, mas em qualquer assunto. O secretário portanto prega o desrespeito às leis e incentiva a imoralidade. E Barrionuevo pergunta: "Será este o pensamento do governo?" Muito séria a preocupação do jornalista. Será que, para o governo Olívio, não existem no mundo questões morais e legais? Será?
Não, eu não estou paranóico: notem que o título "Pérola" só se justifica pelo deslocamento da frase de seu contexto. Como resposta a "...o senhor não acha que, neste caso, tem uma questão legal mas tem também há uma questão moral?" a frase de Guaracy é banal, quase óbvia, não tem nada de pérola. Torna-se uma pérola pelo deslocamento, uma pérola da manipulação, mais uma no colar de muitas voltas da Página 10 de Zero Hora.
Quanto às efemérides festivas, sugiro a
comemoração, no dia 1 de maio de 2000, dos 500 anos da carta
de Pero Vaz de Caminha. Em sua última linha o cronista faz um pedido
a Vossa Alteza, rei de Portugal: "a Ela peço que, por me fazer graça
especial, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório
meu genro - o que d'Ela receberei em muita mercê". O primeiro documento
escrito no país, passados poucos dias do descobrimento, termina
num bilhete a uma autoridade pedindo um favorzinho para o genro. Isto é
que é vocação histórica!
Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br