Juliette Binoche e eu
porTailor Diniz
 

Leio um perfil de Juliette Binoche e tenho aquela sensação de desalento, que volta e meia nos surpreende quando nos damos conta de que, por um mero detalhe, chegamos atrasados como testemunhas oculares de fatos importantes da história. Resumindo, senti a mesma frustração daquele índio que, no dia 26 de abril de 1500, saiu atrás de um javali e, quando voltou à aldeia, o Frei Henrique de Coimbra já havia colocado um ponto final à primeira missa rezada no Brasil.

Diz a reportagem que Juliette Binoche, antes da fama, foi empacotadora  da BHV, uma loja de departamentos localizada próximo ao Sena, em Paris. Em conseqüência de uma primeira leitura feita às pressas, entendi que ela trabalhara nessa loja até 1987. Com um certo desalento, recordo-me que estive na mesma BHV pouco tempo depois, onde ocorreu-me um fato engraçado, que jamais esqueci. À época, o episódio me chamou atenção por haver nele uma certa relação com um conto de Julio Cortázar, que eu acabara de ler e ainda me martelava a cabeça, como todo bom texto que se acaba de degustar.

O conto se passa no metrô de Paris, onde um homem, diariamente, pratica um jogo absurdo e obsessivo: atrair o olhar de uma bela mulher através da imagem refletida na janela do trem e, uma vez vitorioso, esperar, em silêncio, que o roteiro de conexões previamente estabelecido por ele, antes de sair de casa, coincida com o dela, para só assim ter o direito de abordá-la, conforme as regras do absurdo jogo. Depois de várias paradas minadas de expectativa e tensão, de troca de olhares em imagens refletidas na janela em movimento, se a mulher não descer na parada pré-estabelecida, tudo estará perdido e o homem precisará começar o jogo outra vez, com outra mulher, com outro roteiro de conexões previamente detalhadas.

Eu estava na loja e, através do espelho, observava a distração de uma bela empacotadora parada na ponta de um balcão ao lado do caixa. Súbito, ela abriu a boca e bocejou longamente. Findo o gesto, talvez atraída pelo meu olhar explícito e de indisfarçável encantamento, virou-se para o espelho e sorriu, um sorriso que, agora, nem perderei tempo tentando descrever, apenas o direi belo e inesquecível.

Como estava de saída, antes de chegar à porta ainda me virei uma última vez para trás. Desejei conferir aquele rosto sem a intermediação fria do espelho e ela continuava a sorrir, os olhos ainda cravados em mim, falando ao ouvido de uma colega. Cheguei a imaginar o que dizia, com aquele biquinho que Deus só às francesas teve a bondade de permitir:

- Cet idiot m’a vu bâiller!

Volto ao jornal para reler o perfil e uma supresa: desolado com um possível atraso histórico de poucos meses, não me dera conta de que, pela combinação de algumas datas, Juliette (já me permito chamá-la sem o sobrenome) ainda trabalhava na BHV quando lá estive.

Agora, a bem da verdade, começa a se desfazer aquela sensação estranha que sempre me assolou o espírito desde a primeira vez em que a vi, os olhos entre tristes e distantes, num anúncio da Lancôme:

- O olhar dessa menina não me é estranho...

Corro à locadora, pego Les Amants du Pont-Neuf, um de seus primeiros filmes, e não me resta mais a mínima dúvida. A empacotadora que surprendi bocejando, numa loja de departamentos de Paris, era Juliette Binoche. Sou capaz até de arriscar uma nova intepretação para certos fatos que hoje já se tornaram verdade no imaginário universal: aquele sorriso, que a crítica chama de triste, e aquele olhar, que o diretor de Perdas e Danos imortalizou como “atemporal”, são, na verdade, frutos de uma trapaça imperdoável de seu coração. No fundo, meu caro Luis Malle, aquele olhar, que o senhor assim o chama (atemporal),
é consequência da mais pura frustração e arrependimento. De arrependimento por não ter corrido atrás do idota que certa vez a viu bocejando, numa loja de departamentos à beira do Sena, naquela tépida manhã de pura solidão e ressaca no coração de Paris.
 
 
Tailor Diniz
tailor@uol.com.br


Tailor Diniz é jornalista e escritor. Tem cinco livros publicados, entre eles os romances “O Assassino Usava Batom” (Destaque em Narrativa Longa do Açorianos 1998) e "O Círculo da Paixão", lançado neste ano. Mate a saudade da Juliette Binoche em http://www.binoche.com/. Depois, volte para o...