O ato de contrição ensina que pensamentos, palavras, atos e omissões são os veículos do pecado. Sendo a via de mão dupla, é de se esperar que também conduzam virtudes. Pecados e virtudes pessoais e alheias não interessam. Como diria aquele programa de computador traduzindo o Andy Wahrol, não bisbilhotice, senhorita. Boa ficção é mais divertida. Já os pecados e virtudes públicas me parecem um ótimo assunto. Só Deus sabe o que as pessoas pensam. Eu, que sou ateu, mal sei o que eu mesmo penso. E ainda nem chegamos perto do problema maior, que é compartilhar pensamentos sem reservas, faz de conta que alguém quer. Houvesse uma saída em sinal digital, conectável ao cérebro alheio, e talvez conseguíssemos descobrir o que realmente pensam FHC, Olívio ou Onyx Lorenzoni. Felizmente não há. Por exclusão, resta que nos preocupemos com atos, palavras e omissões públicas.
Sobre Onyx Lorenzoni desconheço quase tudo, até a grafia do nome. Guardo em vídeo alguns desculpáveis diálogos com um boneco de nome Urninha, já vi coisas piores feitas por gente de maior biografia. A democracia pressupõe que toda a sociedade seja representada, mesmo os que têm o hábito de conversar com bonecos de espuma. Onyx entra e sai deste texto, portanto, como Pilatos no credo.
Que eu lembre, minha primeira grande decepção com Fernando Henrique foi a maneira subserviente com que se aliou a ACM, símbolo da prepotência das elites, sempre confiantes na impunidade que pariram e amamentam. Enfim, o que o Brasil tem de pior. Até ali (93?) via FH - eu e a torcida do Olaria - como um respeitável intelectual de esquerda. Me lembro do esforço que fiz para tentar ler "Capitalismo e Escravidão", uma interpretação dialética da sociologia e, melhor, ambientada no Rio Grande do Sul. Imagino que o livro seja uma fieira de boas intenções mas é muito chato. Num parágrafo de cinco frases, quatro começam com "Noutras palavras..", "Mas...", "Todavia...", e "Em outras palavras...". Um exemplo de estilo: "... é preciso conduzir a análise de maneira que as informações fornecidas pela investigação histórica possam ser situadas tanto com relação às situações vividas que lhes deram origem como quanto à sua significação no que se refere ao padrão de integração da sociedade...". Como quanto à sua significação no que se refere ao padrão, para quem já tinha lido o Pasquim, parecia piada.
FH cresceu no meu conceito ao confessar publicamente ser ateu e ex-maconheiro. Até que enfim um político não demagogo, pensava eu, pobre de mim. A tal foto tirada já na cadeira do prefeito, dias antes de ser derrotado por Jânio, me pareceu menos arrogância do que uma saudável ingenuidade. Na época. Hoje, penso o oposto. Lembro até de ter abaixo-assinado uma carta sugerindo a aproximação do PT com o PSDB, isto antes de os tucanos virarem dublês do PFL para cenas de auditório. A primeira campanha, com a mão espalmada, escancarou a cretinice. Inadmissível também que FH nunca tenha aceitado debater com os seus adversários eleitorais. É um emblema da nossa era que um intelectual chegue ao poder lendo teleprompter.
Depois de eleito, só piorou. Sua única preocupação no primeiro mandato foi garantir o segundo, comprando votos de deputados com dinheiro vivo, em malas. A reeleição foi um golpe de estado que custou mais de 40 bilhões de reais, gastos para fingir que o real valia quase um dólar. Saíram direto do nosso bolso para o de uma dúzia de banqueiros, com escala no Caribe. Pior ainda foi a venda das teles, a treta de maior bilheteria da história da república. O presidente diz que feliz é quem mora na Europa e que o ministro "com certeza" pode usar o seu nome para favorecer um grupo num leilão. Um ministro diz que o outro é um babaca que está sendo enganado e que mais tarde ele manda o documento com a data "retroativa". Banqueiros assinam fianças de bilhões válidas por 24 horas e confessam trabalhar "no limite da irresponsabilidade". E pensar que o Collor foi deposto por causa de uma Fiat Elba. Tem o anúncio de uma no JB de ontem, Elba Weekend Prata, ano 91, 5 mil reais.
Se não bastasse tudo isso, como confiar num presidente que não gosta do Chico Buarque?
Apesar da grosseria da reação, acho que Olívio já passou o pior momento, aqueles 15 primeiros minutos de um jogo contra argentinos lá, numa final de Libertadores, mais da metade do estado sabe o que é isso. Está na hora de deixar a oposição falando sozinha e trabalhar mais. Está na hora de reconhecer erros e tentar corrigi-los. Que tal começar aposentando aquela presunçosa auto-proclamação de democracia e popularidade em telefones públicos? Ou vão ser quatro anos desta chatice? E cadê a Bolsa Primeiro Emprego? E o Cestão Popular?
Para não dizer que não falei na Ford, acho
que faltou ao PT a compreensão do que representam as marcas no imaginário
popular. As marcas são os novos semideuses, valem mais que máquinas,
paredes ou produtos reais. Ford é, antes de tudo, uma marca poderosa,
o próprio praticamente inventou o capitalismo industrial. A produção
de automóveis em série mudou o rumo da história tanto
ou mais que as teorias econômicas e políticas que petistas
adoram debater. Claro que o governo gaúcho fez muito bem em não
entregar mundos e fundos para a muito espertinha da Ford, mas não
pensem que a perda não tem um alto custo simbólico. Podem
até botar no lugar outra empresa maior, que gere mais empregos e
não exija casa comida e roupa lavada que não adianta: se
o nome for Fard ou Furd, muitos continuarão com saudades do que
não houve. E daqui a quatro anos o governo petista terá provar
que o real pode ser mais interessante que o imaginário. Tarefa ingrata.
Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br