Não entendi por que o Foguinho conclui que criticar a Daniela Mercury por ser porta-voz do ACM revela uma visão de quem "só pensa a política em termos de marketing". Penso a política também em termos de marketing. Algum problema? Mas não costumo confundir a posição política dos criadores com sua obra. Acho até que a Daniela canta músicas ruins muito bem mas, por favor, compará-la com Carmem Miranda, mesmo que indiretamente, é um pouco demais, talvez fruto de uma overdose de água de coco. Não quero "instaurar linha divisória" nenhuma, acho que o Caetano tem todo o direito de apoiar quem ele bem entender, ACM, FHC, Netinho ou Daniela Mercury. Continuo lendo o que ele escreve e ouvindo suas músicas com o interesse de sempre. Mas não venha o Foguinho com esta conversa de que o Caetano disse para ele que "as perguntas que eu me faço, eu as faço publicamente". Como diz o Nei Lisboa, "eles querem parecer sinceros demais". Se as dúvidas do Caetano fossem só as que ele torna públicas ele seria não apenas um chato mas também um bobo. E ele não é. Concordo inteiramente com o slogan do Pasquim (deve ser do Millôr): "Se você não está em dúvida é porque foi mal informado". Tudo que eu escrevo aqui são dúvidas, uma pequena parte das que tenho e muito prezo. Tomo por elogio a idéia de que pareçam certezas.
O Foguinho não entendeu (ou finge que) o que eu disse. Seu discurso anti-stalinista é de uma obviedade ululante, por alguns momentos pensei em estar de volta ao início dos anos oitenta, tomando um Minuano Limão e ouvindo o Supertramp. Não consigo achar graça na idéia dar ao ACM mais poder do que ele já tem. E repilo (sempre quis usar esta palavra!) a insinuação cretina de que atacá-lo é um pretexto para "mascarar o racismo sulista, a idéia de que esses baianos são todos iguais e é preciso acabar com eles antes que seja tarde". Foguinho está julgando quem não conhece de acordo com seus próprios padrões.
Também não escrevi a frase que ele mais uma vez colocou entre aspas "não podemos facilitar". O que eu escrevi foi: "Não sei, é melhor não facilitar". Foguinho, que parece prezar tanto a exposição das dúvidas, suprime a dúvida que eu exponho com o uso indiscriminado que faz das aspas. Suprime também o tom coloquial e auto-depreciativo da frase, transformando-a, ao levá-la do singular ("não sei") para o plural ("não podemos"), numa ridícula convocação cívica. Se o Foguinho trata as palavras com tal desleixo, por favor, tome mais cuidado ao me citar entre aspas.
Para não deixar passar: a revista Veja, cada vez mais canalha com medo da concorrência de Época - agora sob a administração Augusto Nunes - achincalhou o Caetano pelo uso de uma máscara numa favela durante sessão promocional de Orfeu. Mario Sabino (o mesmo que fez aquelas páginas amarelas com o Olívio) chamou o Caetano de "traficante fashion". Pena que Veja não tenha informado seus leitores que dezenas de máscaras foram distribuídas na sessão como material promocional e que muita gente estava usando. Ao suprimir esta informação e estampar só a foto do Caetano com a tal máscara, Veja desinforma o leitor e explicita seu caráter fascista. Mantendo todas as devidas proporções, é o mesmo truque usado aqui pelo Foguinho ao colocar entre aspas frases que eu não escrevi.
Nunca pensei em dividir o mundo em pré ou pós Artaud, menos importante por sua obra do que por santo padroeiro da geração mimeógrafo. E não entendi como Picasso possa ser arrolado como testemunha do engavetamento provocado pela barbeiragem do Foguinho. Foi Picasso quem afirmou mais veementemente que "arte é tudo o que a natureza não é". Picasso, mais do que qualquer um, libertou o artista da canga da realidade. E acho que é aí que se esconde o maior descompasso entre a maneira com que eu e o Foguinho (ou o Gerbase, na sua proposta Não-Odara – olha o Caetano aí outra vez) vemos o Não. Fui eu que, como editor do Não 62, expurguei poemas e ficções. Justifiquei minha opção no editorial. Acho que este é um ótimo espaço para trocarmos idéias sobre o universo real, sobre o que acontece com cada um de nós e com o mundo, e que continuará acontecendo sendo descrito ou não. Enfim, um espaço para fazer jornalismo ou, no limite, crônica. Nada contra os (bons) poetas, contistas e romancistas, mas a internet está engarrafada de revistas literárias e a minha mesa de cabeceira está cheia de livros que ainda não li. Foguinho se refere a mim como "um artista" que eu não sou e não pretendo ser, muito menos aqui.
Sem dúvida o Não precisa ser criticado de dentro para a fora. E aí? Não é tabu nenhum, a não ser que o Foguinho ache que só ele pode criticar, ou que suas críticas devam ficar sem resposta. Concordo com ele que o Não pouca função tem além de ser um espaço para discussões "acaloradas e carinhosas, tudo ao mesmo tempo". A idéia, que eu saiba, continua sendo esta.
Para terminar: a enrolação com que o Foguinho respondeu
ao meu desafio de editar o Não (não tenho a pretensão,
não entendo de computador, não tenho tempo, etc.) pode ser
sintetizada numa singela expressão: pediu penico.
Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br