Prezados Senhores
Como certamente é de seu conhecimento, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do CEPA - Centro de Estudos e Pesquisas em Administração - está colocada no centro de um debate político que ocupa os principais espaços da imprensa gaúcha nos últimos dias. A pesquisa realizada pelo CEPA-UFRGS/RBS sobre as negociações entre o Governo do Estado e a Ford foi utilizada como importante argumento pelos defensores do acordo ao mesmo tempo em que sua metodologia era questionada por muitos, inclusive por mim. Escrevi alguns artigos sobre o assunto numa revista eletrônica (www.nao-til.com.br).
Meu principal questionamento sobre a metodologia utilizada pelo CEPA se refere ao universo pesquisado. A pesquisa ouviu 560 moradores da região metropolitana. O CEPA/UFRGS entrevistou 78 moradores de Gravataí e 75 de Guaíba, as duas cidades onde se instalariam a GM e a Ford. Não foram feitas entrevistas em Canoas, Viamão, Sapucaia, São Leopoldo ou Esteio, por exemplo. Segundo o IBGE a região metropolitana de Porto Alegre tem 3.245.306 habitantes. Gravataí (206.023) e Guaíba (85.969) juntas têm 291.992, representando 8,9 % da população total. Mas Guaíba e Gravataí representaram 27% do universo pesquisado. Na pesquisa UFRGS/RBS, portanto, Guaíba e Gravataí tiveram seu peso mais que triplicado. Se considerarmos apenas Guaíba, cidade que seria a mais beneficiada com a vinda da Ford, o desvio fica ainda mais evidente. Guaíba representa apenas 2,6% dos moradores da região metropolitana, mas representou mais de 13% do universo pesquisado pela UFRGS. Guaíba teve seu peso multiplicado por 5 na pesquisa CEPA/UFRGS. No editorial publicado em 14 de maio Zero Hora afirma que a pesquisa foi realizada "sem qualquer interferência da RBS na escolha do universo pesquisado ou da metodologia adotada".
Não tenho formação em matemática ou estatística. Baseio minha opinião e conclusões numa análise leiga dos números e da metodologia da pesquisa, divulgados por vocês no site de Zero Hora (www.zh.com.br/pesquisa/pesq16.htm) e nos números do IBGE (www.ibge.org). Não quero cometer injustiças contra uma instituição com a tradição da UFRGS e estou pronto a publicar em nossa revista qualquer observação que vocês possam fazer para corrigir eventuais distorções da lógica por mim empregada. Objetivamente, acredito que o CEPA-UFRGS deveria se pronunciar sobre a maneira como a pesquisa foi encomendada e elaborada e, principalmente, como foram determinadas as cidades onde seriam aplicados os questionários.
A credibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é muito importante para todos os gaúchos. Com a certeza de que sua participação clara e franca será de enorme importância no debate democrático, aguardo resposta.
Cordialmente, Jorge Furtado
De: Luiz Antonio Slongo
Para: Jorge Furtado
Data: 23 de maio de 1999
Prezado Senhor:
Como Diretor do CEPA (Centro de Estudos e Pesquisas em
Administração), órgão da Escola de Administração
da UFRGS, lamentamos a agressividade com que algumas pessoas, com acesso
à imprensa, têm se manifestado quanto às últimas
pesquisas que temos realizado, abrigadas no convênio UFRGS/RBS.
As matérias que têm circulado atacam, por
falta de conhecimento, queremos crer, um grupo de professores e pesquisadores
que, por sua postura acadêmica e dedicação à
pesquisa, construiu uma Escola de Administração, cuja reputação
no cenário nacional tem se refletido nos conceitos obtidos junto
a organizações oficiais como CNPq, CAPES e MEC. Nosso curso
de Graduação e nossos Programas de Pós-Graduação
(especialização, mestrado e doutorado) têm recebido
conceito máximo nas avaliações feitas por estes órgãos.
Isto não é gratuito, é fruto de muito trabalho sério
que agora é reconhecido.
O CEPA é o órgão mais antigo da
Escola. Com 40 anos de trabalho dedicado à pesquisa e ao aperfeiçoamento
profissional na área da Administração, atingiu um
estágio que lhe dispensa a necessidade de aceitar tarefas ou prestar
serviços a organizações que lhe imponham restrições
à liberdade acadêmica ou à seriedade do trabalho realizado.
Nos causa estranheza, por outro lado, que as inúmeras pesquisas já realizadas pelo CEPA em sua história e divulgadas nos mais variados meios de comunicação, como também tantos serviços já prestados a um grande número de organizações públicas e privadas, nunca tenham sido objeto de atenção como está ocorrendo agora com a pesquisa sobre as montadoras.
Concordamos plenamente com a defesa da liberdade acadêmica e a observância ao rigor científico, que devem pautar todas as nossas atividades. Discordamos, no entanto, e de forma veemente, com a tentativa de jogar o CEPA em uma posição indigna da tradição de nossa Escola de Administração e dele próprio, frente ao seu passado de lisura e seriedade com que sempre desempenhou suas atividades. Não podemos aceitar que pessoas mal informadas, ou mal intencionadas, refiram-se a nós de tal maneira.
Não podemos aceitar também que limitem as atividades do CEPA à pesquisa de mercado. O CEPA é um órgão de indiscutível competência para promover a extensão em áreas de treinamento e desenvolvimento gerencial, ou realizar pesquisas na área da Administração em geral. Gostaríamos de informar ainda, para os menos esclarecidos, que a Administração é uma ciência social aplicada. Dessa forma, buscamos em outras áreas, não só os conhecimentos teóricos, como também os metodológicos, na utilização dos quais temos larga experiência.
Sem pretendermos dar aqui uma aula de metodologia da pesquisa, cabe fazermos algumas observações sobre os métodos e técnicas utilizados pelo CEPA na realização da pesquisa sobre as montadoras no Rio Grande do Sul, foco das agressões a nós dirigidas.
1ª) Este trabalho faz parte de uma série de pesquisas que realizaremos para a RBS, com uma característica peculiar: são pesquisas de opinião realizadas "em cima dos fatos" para dar base ao jornalismo da empresa. Como tal, elas devem ser curtas, com poucas questões, o que, de maneira nenhuma, representa demérito ao seu rigor e seriedade.
2ª) A amostra utilizada foi suficientemente grande e adequadamente distribuída para, dentro dos parâmetros de confiança estabelecidos pelo pesquisador, representar a região metropolitana de Porto Alegre. As cidades selecionadas tiveram por base nosso banco de dados sobre os municípios do Rio Grande do Sul. Dispomos, provavelmente, do mais completo banco de dados sobre os município do estado (são quase 300 informações de cada um dos 467 municípios que compõem o estado). Isto nos permite identificar, com bastante precisão, os municípios que melhor possam representar cada região para efeitos de pesquisa. Salientamos também que a amostra desproporcional - segundo a má interpretação de alguns - levantada nas cidades de Gravataí e Guaíba, tem uma explicação lógica: queríamos confrontar as opiniões das populações dessas duas cidades - pois ali seriam instaladas as duas montadoras -, com o resto da amostra. Para tanto era necessário uma amostra maior, para que tivéssemos maior segurança na comparação. Aproveito para informar que não houve nenhuma diferença estatisticamente significativa nas respostas obtidas entre as duas sub-amostras (Gravataí/Guaíba x demais cidades pesquisadas), o que nos permitiu incorporar as amostras dessas duas cidades à amostra total sem nenhum prejuízo à qualidade da pesquisa.
3ª) A elaboração das questões partiu de uma investigação exploratória inicial que buscou identificar, junto a uma pequena amostra na região de abrangência da pesquisa, aquelas questões que mais ocupavam espaços nos debates entre as pessoas naquele momento, sobre o assunto. A investigação identificou que existia uma grande preocupação quanto a: se empresas do porte da GM e da Ford devem ou não vir para o Rio Grande do Sul; se o governo deve ou não dar incentivos para estas empresas instalarem-se aqui; se o governo deve ou não manter os contratos firmados pelo governo anterior com estas empresas; e se elas têm o poder de melhorar ou não a vida dos gaúchos. Eram questões perfeitamente claras e facilmente compreendidas pelas pessoas de qualquer escolaridade e/ou formação. A própria elaboração das questões obedeceu uma linguagem extraída desta investigação para que tivéssemos a necessária clareza de compreensão das mesmas por parte das pessoas entrevistadas.
4ª) Finalmente, gostaria de informar que o convênio realizado entre a UFRGS e a RBS é apenas um dos vários que temos, tanto com empresas privadas quanto públicas. Particularmente, consideramos este tipo de aproximação da Universidade com a comunidade empresarial altamente salutar. O envolvimento de alunos e professores em atividades de pesquisa aplicada e/ou em serviços prestados nas áreas de treinamento e consultoria, permitem maior aproximação entre teoria e prática, questão bastante polêmica tratando-se do ensino na área da Administração. Por outro lado isso também nos ajuda a combater a imagem de clausura da Universidade, ou de instituição dissociada da realidade.
Colocamo-nos à disposição para qualquer outra dúvida que por ventura o Senhor possa ter quanto a esta ou qualquer outra das pesquisas e/ou atividades de treinamento e consultoria que o CEPA realiza.
De: Jorge Furtado
Para: Luiz Antonio Slongo
Data: 24 de maio de 1999
Prezado senhor:
Em primeiro lugar, obrigado pela gentileza em responder meu e-mail. Acredito que os debates públicos de temas como estes estimulam a participação política e fortalecem a democracia.
Através de artigos no Não manifestei, desde o dia de sua publicação, minhas dúvidas e discordâncias quanto à metodologia utilizada pela pesquisa UFRGS/RBS. E confesso que sua resposta, esclarecedora sob alguns aspectos, não foi suficiente para extingui-las.
Não coloquei em dúvida, em nenhum momento, "a postura acadêmica e dedicação à pesquisa da Escola de Administração", nem "a reputação no cenário nacional alcançado pela escola em 40 anos de trabalhos dedicados à pesquisa". Coloquei em dúvida - e continuo colocando - os critérios e métodos utilizados pelo CEPA/UFRGS na pesquisa que realizou para a RBS na questão da Ford.
Estranhei especialmente - e continuo estranhando - o fato de Guaíba e Gravataí representarem 27% do universo pesquisado pela UFRGS, quando representam apenas 8,9 % da população da região metropolitana. Estranhei o fato de Guaíba, que representa apenas 2,6% dos moradores da região metropolitana, ter representado mais de 13% do universo pesquisado pela UFRGS. O senhor diz que a amostra só é desproporcional "segundo a má interpretação de alguns". E afirma que a escolha preferencial por Guaíba e Gravataí "tem uma explicação lógica: queríamos confrontar as opiniões das populações dessas duas cidades - pois ali seriam instaladas as duas montadoras - com o resto da amostra. Para tanto era necessário uma amostra maior, para que tivéssemos maior segurança na comparação."
Desculpe, mas não me parece haver muita lógica na explicação. Me parece óbvio que, se o objetivo da concentração de questionários em Guaíba e Gravatai era "confrontar as opiniões das populações dessas duas cidades com o resto da amostra", os números de Guaíba e Gravataí - cidades evidentemente mais favorecidas pela instalação das montadoras - não poderiam ser, como foram, simplesmente adicionados à amostra total. Para que a pesquisa não sofresse desvio, o peso proporcional deveria ser restabelecido.
O senhor informa que "não houve nenhuma diferença estatisticamente significativa nas respostas obtidas entre as duas sub-amostras (Gravataí/Guaíba x Demais Cidades Pesquisadas)" e que, por isso, foi possível "incorporar as amostras dessas duas cidades à amostra total sem nenhum prejuízo à qualidade da pesquisa".
Seus próprios dados desmentem esta tese. A metodologia detalhada não foi divulgada em ZH, mas uma consulta ao site do CEPA (http://www.zh.com.br/pesquisa/pesq16.htm) mostra que a concentração da pesquisa em Guaíba e Gravataí alterou de forma "estatisticamente significativa" o resultado geral. Isto fica evidente, por exemplo, no Gráfico 7, que ilustra o cruzamento das respostas à pergunta 3: "Você acha que o atual governo deve manter os contratos de concessão de recursos com a GM e a Ford, assinados pelo governo anterior?" 27,8% responderam "não" em Outras Cidades. 21,1% responderam "não" em Guaíba e Gravataí. Entre as duas respostas há uma diferença de 6,7 pontos percentuais. Considere que Guaíba e Gravataí tiveram seu peso proporcional multiplicado por três na aplicação de questionários e fica difícil sustentar a idéia de que isto não tenha causado "nenhuma diferença estatisticamente significativa" no resultado geral.
Quanto à formulação das perguntas, não afirmei nem acredito que tenha havido má fé por parte dos pesquisadores. Questiono, no entanto, a alegada neutralidade do texto. (Aliás, questiono a alegada neutralidade de qualquer texto. Este, inclusive.)
Segundo o senhor informa, "a elaboração das questões partiu de uma investigação exploratória inicial que buscou identificar, junto a uma pequena amostra na região de abrangência da pesquisa, aquelas questões que mais ocupavam espaços nos debates entre as pessoas naquele momento, sobre o assunto". Cria-se assim um círculo vicioso. A mídia bombardeia a comunidade com manchetes diárias do tipo "Ford vai para Santa Catarina". Os pesquisadores fazem "uma investigação exploratória inicial" e identificam "aquelas questões que mais ocupavam espaços nos debates entre as pessoas naquele momento, sobre o assunto". É de se supor que as manchetes diárias do maior jornal, de todas as rádios e da televisão estejam entre eles. Baseados nestas "questões que mais ocupavam espaços nos debates" são elaboradas as perguntas da pesquisa. É o momento em que a investigação exploratória vira texto, com pontos, vírgulas e intenções. A pesquisa é feita, concentrando-se a aplicação dos questionários nos lugares mais prejudicados pela "perda da Ford". O resultado das pesquisas vira manchete outra vez.
O senhor diz que estas são "pesquisas de opinião realizadas 'em cima dos fatos' para dar base ao jornalismo da empresa". Eu digo que a pesquisa é um fato em si, criado para dar base a um jornalismo de empresa. Como eu disse, não há texto neutro.
Quanto à agressividade pelo senhor referida "com que algumas pessoas, com acesso à imprensa, têm se manifestado", informo que, pelo capuz que me cabe, não procurei em nenhum momento atacar nem a Universidade Federal como instituição nem os profissionais que nela trabalham. Questionei a metodologia da pesquisa e sua aparente neutralidade. (E, se não o fiz antes, aproveito para questionar também sua validade como instrumento para se estabelecer o que é melhor para o bem comum. Não sou candidato a nada e posso concordar publicamente com a frase de Schiller: "A voz da maioria não representa prova de justiça". Se isto vale até para as eleições, inevitáveis por serem a única forma possível de legitimar um governo, vale muito mais para pesquisas).
Peço desculpas por eventuais excessos de linguagem
utilizados por mim em entrevistas ou textos como este. Eles buscam apenas
chamar a atenção para outro ponto de vista possível,
elevar o tom das vozes discordantes em meio ao trovejar do monopólio,
este sim agressivo e onipresente. E chamar a UFRGS para o debate. Isso,
pelo menos, eu consegui.
Jorge Furtado
jfurtado@portoweb.com.br