O fato do computador especializado em xadrez da IBM, Deep Blue, ter ganho do
campeão mundial humano, Garry Kasparov, em maio deste ano (em uma
série
de 5 partidas, Kasparov ganhou uma, empatou duas e perdeu mais duas)
desencadeou
vários comentários sobre o assunto "homem versus
máquina".
Um ano atrás, Kasparov havia jogado com uma versão mais
antiga do Deep Blue
e ganhado a série de cinco partidas (apesar de perder a primeira
partida - sua
primeira derrota para um computador). O tom dos comentários
então era de
alívio generalizado: ainda éramos "superiores"
à
máquina - pelo menos no xadrez.
Agora isso mudou. Kasparov, e junto com ele nossa
espécie,
foi derrotado por uma
máquina. Em um artigo escrito logo após a
vitória de Kasparov em
1996, intitulado "Deep Blue ou a melancolia do computador", Jean
Baudrillard
discorre sobre o assunto, aventando (de uma maneira que poderíamos
chamar de
profética) a possibilidade próxima de uma vitória do
computador.
Dentre outras coisas, Baudrillard fala sobre nossos desejos e medos ao
criar um computador
que possa derrotar a nós mesmos. Ao mesmo tempo em que nos
equiparamos a Deus -
nosso criador - também criamos um ser superior a nós, e assim
nos tornamos
obsoletos.
"O homem, ao mesmo tempo que sonha com todas as suas forças em
inventar uma
máquina mais forte do que ele mesmo, não pode admitir a
possibilidadede
não ser o mestre de suas criaturas. Tanto quanto Deus. Poderia Deus ter sonhado
em criar o homem superior ao criador e em enfrentá-lo num combate
decisivo?
É o que, contudo, fazemos com nossas criaturas cibernéticas,
às
quais oferecemos a oportunidade de nos derrotar."
(Baudrillard, 1997, p. 134)
Mas afinal, quem - ou melhor, o que - é essa máquina que nos
"derrotou"?
Como ela funciona?
Na página da IBM na Internet sobre o Deep Blue
(http://www.chess.ibm.com) podemos
encontrar um texto chamado FAQ (Frequently Asked Questions, ou perguntas
mais frequentes).
Não só as respostas, mas também as perguntas que
constam ali são
muito interessante. Entre elas estão:
- Porque a IBM gasta milhões de dólares e anos de
pesquisa para contruir
o melhor computador enxadrista do mundo?
-
Porque é tão difícil para o Deep Blue ganhar de
Kasparov se os computadores
podem calcular jogadas de maneira espantosamente rápida?
-
O Deep Blue usa inteligência artificial?
-
Como Deep Blue "pensa"?
-
O Deep Blue usa a psicologia?
(IBM Corporation, 1997,
http://www.chess.ibm.com/me
et/html/d.3.3.html)
Também encontramos uma curiosa comparação entre as
táticas usadas
por Deep Blue e por Kasparov:
10 diferenças entre Kasparov e Deep Blue
1. Deep Blue é capaz de examinar e avaliar até
200.000.000 jogadas por segundo.
Kasparov é capaz de examinar e avaliar até 3 jogadas
por segundo.
2. Deep Blue tem pouco conhecimento de xadez e uma enorme
capacidade de cálculo.
Kasparov tem um enorme conhecimento de xadez e uma capacidade de
cálculo um pouco menor.
3. Kasparov usa seu soberbo "feeling" e
intuição para jogar xadrez como um grande mestre.
Deep Blue é uma máquina, incapaz de sentimentos ou de
intuição.
4. Deep Blue conta com a orientação de uma
equipe de 5 cientistas da IBM e um mestre de xadrez internacional.
Kasparov conta com a orientação de seu
técnico, Yuri Dokhoian, e sua paixão, que o motiva a jogar o
melhor xadrez do mundo.
5. Garry Kasparov é capaz de aprender com seus erros e
acertos, e se adaptar muito rapidamente.
Deep Blue, no momento, não é um "sistema de
aprendizado". Desta maneira, não é capaz de usar
inteligência artificial para aprender com seu oponente ou
"pensar" sobre a posição no tabuleiro.
6. Deep Blue não pode se esquecer, se distrair ou se
intimidar com forças externas (como o famoso "olhar" de
Kasparov).
Garry Kasparov é um competidor formidável, mas ainda
assim é suscetível a fraquezas humanas como cansaço,
tédio e perda de concentração.
7. Deep Blue é assombrosamente eficiente em resolver
problemas de xadrez, mas é menos "inteligente" que o mais
burro dos seres humanos.
Garry Kasparov é altamente inteligente. Ele é o autor
de três livros, fala várias línguas, é ativo
politicamente e é regularmente convidado a dar palestras em diversas
conferências.
8. Quaisquer mudanças na maneira de jogar xadrez de
Deep Blue devem ser feitas pelos membros da equipe de desenvolvimento,
entre uma partida e outra.
Garry Kasparov pode alterar a maneira como joga a qualquer momento,
antes durante ou depois da partida.
9. Garry Kasparov tem a habilidade de avaliar seu oponente,
sentir suas fraquezas e tomar partido delas.
Apesar de Deep Blue ser muito bom em avaliar posições
de xadrez, não é capaz de avaliar as fraquezas de seu
oponente.
10. Garry Kasparov é capaz de determinar sua próxima
jogada através de uma busca seletiva entre as posições
possíveis.
Deep Blue precisa conduzir uma extensa busca entre as jogadas
possíveis para determinar o melhor movimento
(o que não é tão mau quando se é capaz de
avaliar 200 milhões de posições por segundo).
(IBM Corporation, 1997,
http://www.chess.ibm.com/meet
/html/d.2.html)
Ao comparar seres humanos a computadores, Baudrillard fala neste e em
outros artigos que o que
mais o preocupa não é a "humanização"
das máquinas,
mas a "robotização" dos seres humanos. Ora, ao que
parece isso está
longe de acontecer. Se por um lado ainda não conseguimos programar
máquinas para
replicar nossa "humanidade" - não só nossas
inteligências como
nossas emoções - também não logramos desafiar
nossa
"programação" genética. Não conseguimos deixar de lado
nossa humanidade. Por mais que as técnicas de lavagem
cerebral e lobotomização
tenham se desenvolvido, sempre sobra um resto de ímpeto humano
pronto a aflorar.
E isso é mais do que qualquer computador já conseguiu
até hoje.
No cenário apresentado no romance de ficção
científica "Duna"
(do qual se originou o filme de mesmo nome, dirigido por David Lynch) todos
os computadores foram
destruídos em um jihad interplanetário cuja
máxima é:
"não
construirás a máquina à semelhança do
homem". Ironicamente, para
substituir os computadores são treinados humanos chamados
"mentats". Mas o contexto é
bem diferente. As capacidades "computacionais" dos
"mentats" não
são usadas para resolver problemas lógicos ou
matemáticos, mas para problemas
sociais e psicológicos. A partir de um franzir de olho de um
barão e meia
dúzia de palavras de uma freira, um "mentat" pode descobrir, em seus
mínimos detalhes,
a trama para derrubar um duque.
Talvez o que tenha levado os habitantes do universo de Duna a destriur os
computadores tenha
sido o mesmo medo que muitos de nós sentimos ao saber da derrota de
Kasparov - o medo
de sermos superados, e até mesmo substituídos por
máquinas mais inteligentes
do que nós.
Mas em que medida ganhar um jogo de xadrez é uma
avaliação de
inteligência? Segundo a IBM, Deep Blue é mais
"burro" que
qualquer ser humano. O que então permitiu a ele derrotar Kasparov?
Apesar de considerarmos exímios jogadores de xadrez como Kasparov
pessoas muito
inteligentes e talentosas, na verdade essa é uma habilidade muito
restrita quando
comparada ao potencial de nosso cérebro. De fato, outra das
perguntas do FAQ diz
respeito ao fato de em áreas como o xadrez, a música e a
matemática
existirem muitos talentos precoces.
A resposta é que o xadrez é uma disciplina que se
constrói a partir
de um número limitado de "tijolos" fundamentais. À
medida que as
coisas se tornam mais complexas, a experiência passa a contar mais
para a
solução de problemas. Uma estratégia de
"tentativa e erro",
a partir de "variáveis" e "possibilidades de
permutação",
como a utilizada pelo Deep Blue deixa de ser eficiente. No entanto, o jogo
de xadrez, dentre
muitos outros inventados pelos humanos, tem regras relativamente simples.
Segundo o FAQ do
Deep Blue:
"Já foram criados computadores para jogar muitos outros jogos
além de xadrez,
mas nenhum desses jogos é tão interessante do ponto de vista
de pesquisa.
Não há nenhum interesse científico em se dedicar a
jogos de azar,
como a roleta ou os dados, que são apenas uma questão de
sorte e probabilidades.
Dentre os chamados jogos de estratégia, o jogo de damas e o
jogo-da-velha estão
em um nível inferior ao xadrez. São apenas jogos
táticos que podem ser
facilmente compreendidos por um programa de computador. Porém
é muito mais
difícil para um computador jogar o antigo jogo oriental Go.
Os melhores programas de Go já escritos
até hoje conseguem apenas jogar uma
partida medíocre."
(IBM Corporation, 1997,
http://www.chess.ibm.com/m
eet/html/d.3.3a.html)
Quando o poder de cálculo dos sucessores do Deep Blue permitirem a
eles analisar
virtualmente todos os desdobramentos possíveis a partir de cada
jogada, as partidas
se transformarão em uma série de monótonos empates,
como acontece
hoje com o jogo-da-velha.
Enquanto isso não é possível, os programadores tentam
compensar as
desvantagens do Deep Blue adicionando a ele um banco de dados de jogos
já realizados
anteriormente por humanos. É como "tomar emprestada" um
pouco da
experiência humana.
Se uma máxima popular diz que "jogar
xadrez desenvolve
incrivelmente a habilidade de... xogar xadrez", os
técnicos que programaram
o Deep Blue afirmam que seus modelos de precessamento paralelo podem ser
facilmente direcionados
para outros objetivos, como a indústria farmacêutica e a bolsa
de valores.
Os chips e conexões do Deep Blue fornecem a "força
pensante", mas
os programadores determinam sobre o que o Deep Blue deve pensar. Como fala
Baudrillard, ele
pode jogar muito bem a partir de um conjunto de instruções,
dentro das "regras
do jogo" - mas ao contrário de um ser humano, não
é capaz de
inventá-las.
Apesar de não ser capaz de criar sua própria
experiência, ou aprender com
seus erros (o que configuraria uma forma de "inteligência
artificial"), Deep
Blue pode de certa maneira usar a experiência de jogadores humanos,
como o próprio
Kasparov, e imitá-los quando necessário. É o que se
chama hoje de um
"sistema especialista", onde vastas quantidades de
informações sobre
um assunto muito específico são armazenadas em um computador,
e ele pode
"tomar decisões" a partir da experiência acumulada
por seus predecessores
humanos.
Alguns sistemas especialistas em "convívio social"
já conseguem passar
hoje em um teste limitado de Turing. (o teste de Turing diz que um
computador é dotado
de inteligência igual à humana quando consegue se fazer passar
por humano em uma
"conversa" com um observador humano ignorante da verdadeira
identidade de seu
interlocutor.)
Um exemplo do caso acima é Julia, um software que mora nos MOOs
(espécie de jogos
de RPG, ou "realidades virtuais" textuais, em uma mistura de
comunidades virtuais com
literatura interativa que existe na Internet), e é comprovadamente mais inteligente que
alguns seres humanos, segundo os padrões de Turing.
(Turkle, 1997)
Mas apesar de poder "contar" várias piadas constantes
de seu banco de dados a
outros jogadores do MOO, Julia é incapaz de achar graça em
nenhuma delas.
Como diz na página da IBM, e no artigo de Baudrillard: "Deep
Blue, ao contrário
de Kasparov, não é capaz de ficar alegre com suas
vitórias, nem tampouco
triste com suas derrotas." Quando registrarmos
casos de computadores afetados por uma
genuína melancolia, aí sim, talvez seja a hora de nos
preocuparmos com a
sobrevivência de nossa espécie.
Referências Bibliográficas:
- Baudrillard, Jean. Tela Total. Porto Alegre, 1997. Editora Sulina.
-
IBM Corporation. Kasparov x Deep Blue: The Rematch. 1997. [online]
<http://www.chess.ibm.com>
-
Turkle, Sherry. Life on the screen. New York, 1995. Simon & Schuster
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