FICHA BREVE DE LEITURA DO NÃO 64

Por Jorge Furtado
13 de julho, 18:20 

A imprensa nacional agora só fala em Ford e Ronaldinho Gaúcho. Talvez seja o caso de o Olívio duplicar a ponte sobre o Mampituba para que os assuntos fundamentais cheguem mais rapidamente nas distantes províncias do centro do país. O assunto Ford, que parecia esvaecido como a barba do Britto, virou notícia outra vez e amplia as rachaduras na base de apoio de FHC. Covas e ACM fazem uma espécie de torneio início da sucessão e só o quesito preparo físico pode impedir que estejam no segundo turno de 2002. Evidenciando a falta de uma liderança nacional, o PT parou de falar no assunto. Mas o Não não. 

José Roberto Tauile manda para o Não um artigo que foi recusado pelo Globo. É o Não cumprindo seu destino histórico de baluarte da livre expressão. Bundas não assusta! (ou não assustam?) 

Em Bundas 4 mais um formidável editorial do Veríssimo, este sobre o caso. Como está difícil de achar nas bancas, reproduzo-o aqui integralmente sem autorização nenhuma (processos com o editor Tomás Creus). Deu um trabalhão para escanear. Cadê a Bundas On Line?
 
 

Não existe gaúcho puto no sentido, assim, científico do termo. Tudo que você já ouviu em contrário ou se deve a uma falha de percepção - só porque o cara usa rímel e quer pegar no teu pau não quer dizer que seja fresco, tchê, pode ser pesquisa ou a intriga de paranaense. Está certo, houve um veado em Bagé uma vez. Mas ninguém se metia com ele, era o cara mais respeitado da cidade. A lógica era a seguinte: para ser veado em Bagé, só sendo muito macho. 

Mas os gaúchos estão putos. No sentido figurado, e com razão. A Ford não quis conversa com o Olívio Dutra, que propôs uma reforma do contrato assinado com ela pelo governo anterior, do Antônio Britto, para se instalar no Rio Grande do Sul. Não mudava muita coisa - quase tudo que o governo anterior dava de mão beijada o atual também dava, mas sem os beijos. A razão para a revisão para a revisão do contrato era a mesma a invocada por Minas Gerais para renegociar com a Renault e do próprio Rio Grande do Sul para conversar com a General Motors. Todas aceitaram os novos termos, baseados nas novas circunstâncias depois da crise cambial e da desvalorização do real. Menos a Ford. A Ford já estava conversada pela Bahia para se instalar lá, ganhando muito mais vantagens e favores do que ganharia no Rio Grande do Sul, que alem de tudo era governado pelo PT, porra. 

Durante a campanha eleitoral do ano passado o ministro Eliseu Padilha, que é do PMDBR, ou o PMDB Ruim (existe o PMDB Ruim, o PMDB Bom, que é o Simon e mais meia-dúzia, e o PMDB Depois a Gente VÊ) levou um recado do presidente aos empresários gaúchos. Se não evitassem a vitória do Olívio no estado, iam ver o que era bom. (A conversa era para ser reservada mas foi gravada e a gravação foi publicada. Cresce a divida de gratidão da nação brasileira e da moral pública com a fita cassete). A certeza da retaliação cumprida estava na cara do Éfe Agá na cerimônia em que a Ford anunciou, no seu gabinete, na presença reluzente do ACM, que iria para a Bahia. E, temos mais esta cena inacreditável a acrescentar ao prontuário ilustrado deste governo. O anúncio de uma vingança, paga com dinheiro público - BNDES dará mais de um bilhão para a segunda maior empresa do mundo poder começar seu negócio no curral do ACM, além do que virá de outras fontes oficiais - sendo feito não em regozijo secreto, na casa de um dos cúmplices, entre gargalhadas e tapas na barriga, mas no gabinete do presidente da República. Do homem obrigado pelo pacto federativo a tratar todos os estados com igualdade, a não discriminar nenhum por mesquinharia ou conveniência política. E ainda posaram pra fotos! 

Não foi só isso. O governo e sua base parlamentar conseguiram mudar uma lei que impedia a Ford de receber beneficios fiscais destinados à industrialização do Nordeste. Como o anúncio de que a Ford iria para a Bahia é anterior à mudança, às pressas, da lei, a garantia de que não haveria problema, sendo para a Ford e o seu ACM e para castigar o PT a gente muda o que for preciso na marra, fez parte das negociações. 

Enfim: Brasil. 

Luis Fernando Veríssimo, Revista Bundas, número 4. 

No Correio de hoje Celso Furtado, uma espécie de Fernando Henrique de deu certo, acha "estranho que sejam concedidos incentivos fiscais a indústrias que agravam o desemprego". E alerta para o risco da Ford gerar empregos na Bahia e desemprego em São Paulo. 

O editorial de Isto é Dinheiro repete mais ou menos o que foi dito na semana passada pela Folha em editorial e pelos artigos de Clóvis Rossi e Eliane Cantanhede. É assinado por Célia Chaim: 
 

Os gaúchos assistem na primeira fila aos lances da armadilha em que caiu o presidente Fernando Henrique Cardoso. Eles perderam a fábrica da Ford; o presidente corre o risco de perder o fiapo de credibilidade em que se agarra. FHC criou sua própria serpente. Alisou o PFL (leia-se ACM) e está na iminência de se transformar numa marionete nas mãos de seus "aliados da onça". E agora? Ou FHC veta a lei que o PFL baiano forçou no Congresso e que beneficia a Ford, a segunda maior empresa do mundo no setor, e impõe sua liderança, ou cede àquele que hoje é o homem mais poderoso do Pais. (...) Para a credibilidade do governo FHC, a questão da Ford parece muito mais relevante que a reforma ministerial que está por vir e que não promete nenhuma mudança espetacular. Se, num golpe de mágica, FHC colocasse seus pés no chão, ele iria encarar esse desafio e esclarecer a dúvida que até seu mais importante aliado, o governador Mario Covas - íntegro, fiel, influente, acima de qualquer suspeita - deixou escapar: afinal, quem comanda esse governo?

Curiosa é a posição de Elio Gaspari em seu artigo deste domingo (Folha e ZH). Ele é a favor dos benefícios para a Ford na Bahia com o argumento de que ninguém chiou quando a mamata era sulista. E que para os argentinos tanto faz se a Ford fica na Bahia ou no Rio Grande do Sul. Esquece que sim, chiamos e muito. A concessão de benefícios fiscais para grandes empresas foi uma das questões centrais da campanha eleitoral gaúcha. Os argentinos (como os paulistas) estão reclamando só agora porque o projeto da Ford-Bahia é bem maior, depende de mais dinheiro público e aponta para o fechamento de postos de trabalho nas fábricas deles. FHC e a Ford Bahia, como alerta Celso Furtado, está subsidiando o desemprego. A questão Ford-Não Ford, que parecia uma birra de província, tornou-se exemplar na definição de modelos de desenvolvimento. De um lado, os globalizados seduzidos pelo fetiche das marcas, certos de que dar dinheiro público de balaio para a Ford é o caminho da redenção. De outro, os que acreditam que a função do estado é diminuir desigualdades e não aumentá-las. Não entendi por que Elio Gaspari, evidentemente do segundo grupo, defende a Ford na Bahia a qualquer custo. 

O PSDB gaúcho, que era contra a posição do Olívio e a favor do benefícios para a Ford, está agora com ACM ou com Covas? Não ouvi pronunciamentos a respeito. 

Outro texto do Não sobre o caso é o de Kléber Boelter, a favor da guerra fiscal. Um argumento é puramente semântico: não se trata de uma guerra, mas sim de uma "competição dentro das regras da atual legislação". Guerra, é claro, é uma hipérbole, ninguém pensou ainda em bombardear ou invadir o estado alheio, que eu saiba. Outro é que a tal competição seria a aplicação prática do princípio federativo, a autonomia que os estados teriam para traçar sua política de desenvolvimento. Esta tese é derrubada pela declaração de FHC em favor da "descentralização industrial" e dos privilégios para ACM. Os estados seriam livres para traçar sua política fiscal desde que o governo federal seja livre para favorecer quem o apoia e sacanear que lhe faz oposição. A competição só é favorável para as grandes empresas, que assistem de camarote a briga do roto com o esfarrapado para ver quem dá mais dinheiro público para a segunda maior empresa do mundo. O cidadão comum que, ao contrário das grande empresas, paga imposto e muito, só perde. Como o Tauile já demonstrou aqui mesmo no Não, o mesmo dinheiro geraria muito mais empregos em qualquer outra atividade. Kléber defende a premiação aos "estados mais enxutos". É a lógica do "dever de casa", que transforma governadores eleitos (como os presidentes já são) em simples aplicadores das normas técnicas do FMI. Os que defendem um estado menor que o atual estão falando exatamente de quê? Menos médicos nos hospitais públicos? Menos professores, garis e policiais? Menos transporte coletivo, redes de água e esgoto, pavimentação nas ruas? Que apontem onde está sobrando estado por aí. Só vejo faltar. 

Outra pauta que não quer morrer é a pesquisa UFRGS-RBS. Recebi um e-mail sobre o caso, lá vai: 
 
 

Sexta-feira passada, dia 9 de julho, na sessão do Conselho Universitário da UFRGS (CONSUN) foi discutido durante mais de duas horas o protocolo de intenções firmado entre a UFRGS e a RBS, protocolo que legitima do ponto de vista administrativo o serviço de pesquisas de opinião realizado para a RBS pela Escola de Administação. Estas pesquisas de opinião tem sido veiculadas pelo jornal Zero Hora sob o rótulo de "pesquisas de opinião UFRGS-ZERO HORA" e ultimamente "CEPA-UFRGS-ZERO HORA ". Por ser este um tema que tem despertado acaloradas discussões, tanto dentro como fora da nossa Universidade, resulta necessário que a posição tomada pelo CONSUN seja conhecida.

O CONSUN aprovou por 36 votos a favor, 16 contra e 4 abstenções o protocolo de intenções UFRGS-RBS confirmando desta forma a assinatura do mesmo realizada ad referendum pela Reitora em março deste ano".

O debate sobre o tema já produziu pelo menos um bom fruto: na pesquisa CEPA-UFRGS-RBS sobre a saúde, publicada por Zero Hora, o sujeito deixou de ser oculto na manchete. O que antes era "69% QUER..." agora virou "44 % DOS MORADORES DA REGIÃO METROPOLITANA ACHA QUE...". Melhor. 

Bundas também é assunto de mais de um texto no Não 64. Paulo Polzonoff Jr. critica a presença de Ziraldo na Hebe. Acho que Ziraldo está certo, tem que divulgar onde der, até no Bibo Show, se ele convidar. Paulo sonha com "nichos seguros onde a inteligência e a individualidade possam viver em paz". Ouvi falar bem da Islândia, o país onde mais se lê no planeta, mas deve ser um frio de rachar. O final do texto é um chamado ao muro: "Nem esquerda nem direita. Nem PT nem PFL. Nem Só pra Contrariar nem Mozart. Nem Van Damme nem Woody Allen. Nem tutu nem scargot. Nem Sidney Sheldon nem Kafka. Nem BUNDAS, nem CARAS, pois. É tudo parte de um mesmo homem". 

Pela parte do homem que me toca, vou de esquerda, PT, Mozart, Woody Allen, tutu, Kafka e Bundas. 

Um assunto urgente: o Logos II, um navio livraria está ancorado em Porto Alegre. 
A idéia é uma maravilha mas o próprio é um jejo. Só vi matérias elogiosas (ZH, CORREIO, RBS TV, TVCOM e TVE) mas me deu a impressão que era tudo press release. A livraria é bem pequena (apesar do navio ser enorme), os título disponíveis são poucos, ruins e caros. O navio é de uma associação evangelizadora e pelo menos 40% dos livros querem te levar para o paraíso deles, que deve ser um lugar chatíssimo. No meio dos outros 60%, muita auto-ajuda, jardinagem e, só o que parece prestar, livros infantis. Nada que não se encontre em qualquer livraria, possivelmente mais barato. A música ambiente é do tipo new-age consultório e o cheiro do lugar também não é dos melhores. Você é recebido (depois de pagar 50 centavos) por jovens catequizados de nacionalidade indefinida, treinados para sorrir. E as pessoas que deixam o barco são constrangidas a abrir suas bolsas para provar que não estão roubando a biografia do Jimmy Carter. Evite! Fuja!

Jorge Furtado