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A paisagem borrada Por Daniel Galera O problema é que não parava de chover há três dias. Ela adorava o barulho da água caindo, o friozinho aconchegante e a névoa plácida causada pela chuva, mas ali, no topo da serra, enclausurada num casebre de madeira situado no mínimo a dez quilômetros de qualquer coisa, a situação tornava-se enervante. Assim que estacionaram o carro na chegada, isso foi na quinta-feira, caíram os primeiros pingos. Levaram rapidamente a escassa bagagem pra dentro da casinha alugada, fecharam a porta e atiraram-se sobre a vasta cama de casal já molhados, eufóricos, motivados para a primeira trepada do feriadão. Choveu durante toda a tarde de quinta. Preparam uma panela de pinhão e foi isto a janta, acompanhado de uma garrafa de vinho tinto. Cansados da viagem, foram dormir cedo. "Até amanhã esta chuva parou, e a gente vai tomar um banho de cachoeira!" dissera Pedro. Ela adormecera enrolada nele, ambos enrolados em quilos de cobertas forradas com lã, embalados pelo som constante das gotas sobre as telhas. Ela sempre adorou o barulhinho de chuva pra pegar no sono. Manhã seguinte antes de abrir a janela ela já adivinhara a chuva, sentira o cheiro de campo molhado e escutara o murmúrio de ruídos líquidos ainda com os olhos fechados. A água caía insistente, e havia alagado o terreno logo abaixo da janela do quarto. Ela gastou minutos observando e imensidão daqueles campos ondulados, repletos de rios e araucárias de tronco verde. Uma vastidão corcoveada, revestida de um capim pálido e rochas escuras, que se estendia até a linha do horizonte, longínqua e na maioria do tempo escondida pela névoa. Numa pradaria distante, um rebanho de gado mal era visto. A poucos metros, um pássaro marrom e amarelo tomava banho, mergulhando rapidamente numa poça d’água e sacudindo as penas num tremelique engraçado. O céu era uma só nuvem densa, de tonalidade plúmbea, extensão infinita e impenetrável de onde descia a insistente parede d’água. Por um momento ela estremeceu diante da beleza desta paisagem borrada, úmida e imensa. Sentiu felicidade por estar em lugar tão magnífico, tão longe da concreto urbano, distante de todos os fatores externos que, no dia-a-dia, a impediam de ficar assim, de rosto colado numa janela, revirando-se preguiçosamente na cama por longo período após acordar. Tomaram um café bem quente. O frio tornou-se mais intenso, botou uma blusa de lã por cima da outra. A chuva era inesgotável, sem trovões. Almoçaram, dormiram de novo, acenderam o fogão a lenha, ficaram por horas lendo cada um seu livro, sexo, mais um vinho, e enfim impaciência. "Nunca vi chuva desse jeito" disse Pedro. "Eu tou começando a ficar preocupada, é bom que pare logo. Eu queria tanto dar uma volta, tem a cachoeira que o seu Leonel falou, e eu quero subir nos morros também". "A gente podia ter trazido um rádio", Pedro sussurou. A música para ele resolveria tudo. "Mas amanhã pára. Não é possível, isso". Ela sabia que a chuva não cessaria, e por isso não conseguiu dormir bem. Cochilava meia-hora e despertava, só pra constatar sua certeza de que a água estaria ainda precipitando em cadência monótona, inviolável. Segunda manhã, terceiro dia, chuva. Ela abriu a janela e encontrou o mesmo cenário da manhã anterior, mas desta vez eram maiores e mais nítidas as zonas alagadas. Pelas trilhas ao redor do casebre desciam pequenas cascatas de água barrenta. Há três dias o campo recebia o açoite em silêncio, resignado, e seu verde a cada hora parecia mais pálido, mais descolorido. "Vamos embora", ela disse a Pedro. "Chega. Essa água não vai parar nunca. Tou de saco cheio". "Não vai dar, Camila. Com toda essa chuva, nem um tanque de guerra atravessa a estrada até Bom Jesus. Vamos ter que esperar o sol". De joelhos na cama, Camila saltou. A perspectiva de ficar dias ali presos, debaixo da chuva interminável, provocou-lhe um esboço de desespero. Olhou de novo pra fora. Já não havia beleza nenhuma nos campos, eram apenas charcos alagados e intransponíveis. As araucárias eram espantalhos imundos e decadentes, galhos podres que quebrariam-se em pouco tempo. O céu era um teto opressor, irredutível, que a qualquer segundo despencaria sobre tudo aqui embaixo. O som da chuva caindo nas telhas e correndo pelas calhas era como o zumbido de um inseto venenoso que rondava a casa, incansável. A umidade tornava o ar asqueroso, penetrava pelas fendas das tábuas como se desejasse apodrecê-las ou inundar o casebre aos poucos. Camila quis dormir e não conseguia, afundou o rosto nos travesseiros, tentou desligar. Era impossível. Levantou-se num pulo, atravessou Pedro pela sala, abriu a porta da frente e atingiu lá fora o mundo aquático. Sentiu os pés afundando na água e na lama, a chuva ainda potente a encharcar-lhe os cabelos, roupas, pele. Abriu os braços, a boca, engoliu água. Estava condenada à chuva, e decidiu tornar-se parte dela até que o sol retornasse. |