UM ANJO ENTRE NÓS

Por Tomás Creus

"As pessoas obcecadas por essa idéia de separar o corpo do espírito,
de se tornarem diferentes e de deixar de ser homens, não passam de loucos;
não se transformam em anjos e sim em feras; em lugar de se elevarem, abaixam-se."
- Michel de Montaigne

"O que é o Céu senão um suborno, e o que é o Inferno senão uma ameaça?"
- Jorge Luis Borges

"A vida é o oposto da morte."
- Paulo Coelho

1. Anunciação

          No começo, não acreditamos que ele fosse mesmo anjo, apesar de ter se apresentado como tal. Não sei, aqueles olhos exageradamente azuis e aqueles cabelos loiros, ridiculamente encaracolados, não nos pareciam uma prova suficiente do seu caráter sobre-humano. Nem mesmo o aspecto delicado, de extrema fragilidade, como se ele personificasse a própria inocência, chegou a nos convencer. Tampouco o sorriso alvo, as mãos jovens e suaves, e aquela voz melodiosa que quase se poderia definir como celestial. Tudo tão falso! Mas o que nos parecia mais fajuto, mesmo, eram as asas: aquelas asas tão extravagantes, tão... barrocas! Era consenso entre nós que um anjo tão parecido às representações clássicas — um verdadeiro clichê ambulante — só poderia ser uma falsificação.
          Algum ingênuo argumentará que as asas constituíam a prova viva de que ele não era deste mundo. Mas nós éramos fiéis adeptos do ceticismo filosófico — e, numa época em que laboratórios criam clones de ovelhas e ratos com orelhas nas costas, por que duvidar de um homem com asas? Não, o que nos convenceu mesmo foi quando Charlene, levando-o de carona depois de uma festa em que todos havíamos bebido muito, estacionou o carro num local escuro, abaixou avidamente o seu calção, e descobriu que ele não tinha sexo.

2. A Carne e o Espírito

          Depois disso, o interesse de Charlene por ele nitidamente decresceu. Ela chegou mesmo a se afastar um pouco do grupo. "Se ele não tem sexo, faz o quê?", resmungava pelos cantos. Não se aproximou mais, e acho mesmo que procurava evitá-lo, como se a sua assexualidade pudesse ser contagiosa. Ela nunca se interessara muito por assuntos metafísicos: para ela tudo era Carne, não havia o Espírito.
          Para o resto de nós, entretanto, aquela revelação trouxera alguns aspectos positivos até então impensados. Passamos, por exemplo, a levá-lo junto conosco a todas as festas, como chamariz. Afinal, com aquele aspecto delicado e aquele jeito de criança perdida, sem falar nos olhos azuis e nas asas branquinhas, ele causava um verdadeiro furor entre as mulheres:
          — Ai, que fofo!
          — É de verdade mesmo?
          — Posso tocar?
          Como ele próprio não tinha meios de fazer qualquer coisa com elas, quem acabava lucrando éramos nós. Foram muitas noites gloriosas. Divinas, diria-se até.

3. Revelação

          E então um dia nos tocamos. Acho que foi o Jorge, ou então o Magú quem comentou. O fato é que nos demos conta que nunca havíamos perguntado o motivo da sua vinda. Por que diabos, ahn, quero dizer, por que cargas d'água ele viera, afinal? Para salvar a humanidade? Profetizar o fim do mundo? Anunciar a nova vinda do Messias? (Por um momento lembramos que havia uma Maria em nosso grupo, mas o anjo certamente não tinha vindo para anunciar sua gravidez — pois isso nós já sabíamos faz tempo, embora ele ajudaria bastante se pudesse disser quem era o pai.)
          A situação começou a ficar incômoda. Até que o Magú tomou coragem e perguntou:
          — Escuta, Gabriel... — era esse o seu nome. — Gabriel, porque você veio aqui?
          E ele, com sua voz doce, suave, melíflua, quase infantil:
          — Eu vim para ver quem é bom e quem é mau.
          E não disse mais.

4. Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo

          Aquilo nos deixou um pouco preocupados. Afinal, desde que ele estivera entre nós não havíamos feito mais do que levá-lo a festas de última categoria, bares decadentes, em uma ou outra ocasião ao cinema (ele detestou "Asas do Desejo"), e certa vez até mesmo — idéia do Bóris! — a um bordel. Éramos relapsos, inconseqüentes, quase todos ateus ou pelo menos agnósticos, não seguíamos nenhum código rígido de moral e pouco líamos a Bíblia. Isso sem falar nos nossos pecados, nosso mau-caratismo, nossos deslizes éticos, nossas pequenas canalhices cotidianas. Era difícil imaginar o que ele pensaria de nós, um grupo de desocupados, estudantes que não trabalhavam sendo que alguns nem mesmo estudavam, colegas de um Mestrado em Filosofia que, francamente, era tão ruim que nem para as mais mínimas dúvidas éticas e teológicas ("o que fazer ao entrar em contato com um anjo?") conseguira nos preparar.
          A insegurança crescia. Desta vez fui eu que me aproximei dele e perguntei:
          — Gabriel... — eu comecei, hesitante, observado a uma prudente distância pelo resto do grupo. — O que... O que vai acontecer com quem for mau?
          Ele não disse nada, apenas sorriu. Mas naquele rosto sorridente eu vi, pela primeira e única vez, algo nitidamente humano: uma expressão maldosa, sacana, um sorriso filho-da-puta mesmo, de quem saboreia antecipadamente e com sádico prazer o tormento dos condenados nas chamas do inferno. Nos entreolhamos em pânico. Descobrimos, então, que estávamos perdidos. Se não nos regenerássemos, nada mais nos restaria a não ser a morte e a desgraça. O horror, o horror.

5. Eis o Mistério da Fé

          A partir de então decidimos mudar. Paramos de ir a festas, de beber, quase até de fazer sexo — menos Charlene, que quadruplicou a sua promiscuidade, chegando ao extremo de trepar em público com três desconhecidos ao mesmo tempo, dentro de uma lotação, só para nos provocar. Mas resistimos. Passamos a nos dedicar como nunca à filosofia, dando especial atenção aos esquecidos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. O Magú começou até mesmo a rezar escondido e a freqüentar a missa um domingo por mês.
          E assim foi indo a coisa, e passaram-se alguns meses, mas nada aconteceu. Continuávamos tão bem — ou tão mal — quanto antes.

6. A Ira dos Anjos

          Até que um dia o Bóris se irritou.
          — Seu anjo filho da puta! — ele gritou. — Quem você pensa que é para nos julgar?
          O Bóris, quando explodia, era imprevisível. Tentamos acalmá-lo.
          — Calma uma pinóia! — ele gritou. E depois, olhando fixamente para Gabriel: — Quem você pensa que é? Hein? Você não é humano, como vai querer nos dizer o que está bem e o que está mal? Se não sofre as tentações da carne, a passagem do tempo, as dores do corpo e da mente, como pode querer definir quem é bom e quem é mau? Se pelo menos fosse um anjo caído, mas olha pra você, porra! Parece saído de um comercial da Parmalat!
          O anjo não disse nada, mas eu senti que não gostou muito da comparação.
          — E digo mais, seu anjo fodido! Não aceito ser julgado por uma entidade abstrata antropomórfica! — Bóris estava mesmo irado, ele raramente usava esses termos. — Vai tomar no teu cu!!
          — Bóris... — balbuciou Jorge, nervoso. — Ele... Ele não tem cu...
          Aquele comentário técnico esdrúxulo irritou Bóris ainda mais:
          — Então que vá à merda! E vão à merda vocês também, seus gnósticos decadentes! — E saiu, batendo a porta.
          Bóris voltou no outro dia, mais calmo, pedindo desculpas, mas o Gabriel desapareceu: não o vimos nunca mais. Mas todos nós tínhamos notado o olhar de reprovação com que ele fitara o Bóris no último dia: como quem risca mentalmente o nome de uma lista.
          "Pobre desgraçado", pensamos. "Esse já era."

7. Os Insondáveis Desígnios da Providência

          Mas quem morreu, menos de um mês depois, foi o Jonas. O Jonas! Apagado, discreto, quase mais uma testemunha do grupo do que um participante ativo. Nunca bebera muito, ou fumara, ou cometera qualquer excesso. Era calmo, ponderado, jamais brigava ou discutia. Acho até que acreditava em Deus. E morreu.
          Ironias do destino, nos diziam. Sabíamos que não era verdade, que tinha sido o Gabriel. Primeiro, porque encontramos uma pena próxima aos destroços — e não era pena de ganso, de pato ou de pomba, era pena de anjo mesmo. Segundo, porque o Jonas não gostava de dirigir e quase não bebia, e o que ia estar fazendo num carro, a cento e vinte por hora, completamente alcoolizado?
          Fora um castigo, disso não havia dúvida. Mas castigo pelo quê? Será que fora aquela noite em que ele mentira, levantando falso testemunho? Ou aquele dia — o único, diga-se com justiça — em que ele traíra a sua mulher, a chatíssima Martinha? Ou a piada que ele contara sobre o padre, a virgem e o papagaio, da qual Gabriel visivelmente não gostara? Mas talvez não, talvez tivesse sido algo anterior ao grupo, um pecado da infância ou da adolescência que não tinha nada a ver conosco e que no entanto era tão terrível que o condenara para sempre. Não sabíamos, não tínhamos como saber, e isso nos deixava mais confusos e mais desesperados.

8. Arrependei-vos enquanto é tempo

          Passaram-se dois anos desde então. Terminado o curso, o grupo se separou. Era como se cada um tivesse decidido escolher um novo tipo de vida para enterrar a antiga, e com ela as suas culpas. Uns viraram professores, outros arranjaram algum emprego público, o Bóris foi fazer doutorado na Sorbonne, o Jorge se mudou para o Uruguai. E eu casei com a Charlene.
          Ainda penso no que o anjo quis dizer quando nos deu o aviso. Afinal, qual era o jeito certo de viver? O que fazer para evitar castigos? Éramos bons ou éramos maus? Não sabemos, e talvez tenha sido essa a mensagem do anjo, a de que não temos como saber. Os desígnios da providência são inescrutáveis, talvez arbitrários, de qualquer jeito incompreensíveis para os comuns mortais. E, afinal, será que vale a pena se preocupar?
          No outro dia eu estava com Charlene, e depois de termos transado por três horas seguidas, eu beijei o seu rosto e disse, sem pensar:
          — Você é um anjo.
          Logo me arrependi, claro. Mas ela sorriu, pegou a minha mão, conduziu-a até o meio das suas pernas e, apertando-a firmemente com as coxas úmidas, disse com uma voz doce, suave, melíflua, quase infantil:
          — Anjos não tem sexo.