A REPUTAÇÃO COMO VERDADE CRÍTICA

por Paulo Bentancur*

Alguém aí já ousou discutir por que aquele último livro do escritor famoso está inferior ao restante de sua obra? Já ousou? Então sabe do que estou falando: do inferno, do ranger de dentes, da fúria exterminadora dos grandes nomes que, uma vez alçados aos supremos píncaros da glória em nossas letras, não admitem mais sair de lá, um minuto – ou um artigo – que seja. Ferozes em defesa da própria reputação, as figuras carimbadas admitem a todo instante injustiças a favor (Jô Soares é um deles, posando e faturando de escritor de importância sem de fato sê-lo). Mas nunca, em hipótese alguma, topam ser examinados com isenção.

Não é à toa que o Brasil tem a classe política que tem. Não por casualidade temos uma das piores distribuição de renda do planeta. Ninguém quer o debate cara a cara sem para isso cuspir no rosto alheio. Ou cospem, ou elogiam os olhos, as sobrancelhas. Dezenas de nomes que a educação me força a omitir ("por delicadeza perdi minha vida", disse o Rimbaud) até conseguem, nos bastidores, longe de câmeras e microfones, admitir que o coleguinha tal relaxou no último romance; que aquele humorista famoso faz "literatura de carregação"; que Rubem Fonseca é gênio nos contos porém nos romances só impressiona pela habilidade técnica (sem dúvida, mantida) a serviço de um inconvincente enredo e descrições histriônicas fabricadas para impressionar, jamais para convencer.

Hoje – será que não foi sempre assim? – um homem paga caro demais por suas opiniões expostas de forma pura, sem hipocrisia. Se se resumisse a escrever livros e mantivesse a boca calada, se publicasse um texto atrás do outro sem jamais referir-se desabonadoramente a nomes bem-cotados, certo é que teria passe-livre para a glória e, portanto, para o mercado. O problema é que um escritor, se efetivamente for bom, tiver talento, a inteligência inerente a tudo isso o munirá de originalidade para ver falhas onde o consenso não viu e coragem suficiente para publicar palpites sobre o erro alheio.

Pra quê! Cai o mundo. O shopping da cultura – da literatura, no caso, a arte que penso praticar – o-d-e-i-a estraga-prazeres. O baile de máscaras dança na feira das vaidades, e um sujeito disposto a ter a mesma sinceridade que usou para elogiar o livro anterior (ótimo) não pode utilizá-la agora se o livro posterior for ruim. Uma vez feita a fama, os autores sob spots deitam-se na cama e querem sombra e água fresca.

Falem bem de mim, ou não falem – eis o ditado autêntico da província, e de algumas metrópoles. "Falem mal de mim, mas falem" é uma máxima popular que talvez se sustente, sim, mas apenas para os humildes, esquecidos, sem fortuna crítica alguma, que querem ser notados a qualquer custo. Nova ilusão, claro, mas pelo menos esta passa em branco, sem peso de mal social algum, já que abate-se sobre gente frágil e, ao menos por enquanto, sem projeção.

O problema é a vitrine. Olha-se. Ali está, segundo consta, os melhores. Queremos examinar os melhores. O João Ubaldo Ribeiro, por exemplo. Vai-se ver de perto e o texto é retórico, sofre da praga baiana do lento arrastão de argumentos e referências a engordurar o estilo e deixar a ficção (cenas e personagens) sem eficácia, com falsa ou nenhuma psicologia.

Ou a gaúcha Lya Luft (o Bruno Tolentino, ao telefone, espantou-se: "mas que horror, Paulo, é essa Lya Luft de vocês!"). Fiquei culpado, como se morando aqui, fosse cúmplice de uma conspiração por elevar acima do que poderia ser a arte da autora de Reunião de família e A asa esquerda do anjo, duas novelinhas (ela não escreve romance, para dizer o mínimo, mas novelas) previsíveis na construção, de estilo medroso, medido, e efeitos quase adolescentes (adolescentes da década de 50, é bom frisar).

O parágrafo acima é capaz de causar: 1) indignação; 2) resposta de que não provei por a mais b, segundo a teoria literária, a inconsistência dos referidos livros. A melhor resposta que posso dar é, antes mesmo de ter de "prová-lo": se eu elogiasse Lya com as maiores asneiras (prática constante no resenhismo camarada tipo tapinha-nas-costas), ninguém iria chiar. Antes pelo contrário. Injustiça a favor, como foi dito antes, pode.

O suplemento Cultura do jornal Zero Hora andou publicando um honesto e valente artigo de Sérgio Capparelli sobre Clarissa, de Erico Verissimo. Embora reconheça as qualidades do autor, Capparelli observou passagens racistas da personagem, abrandando a natureza, digamos, contraditória da menina criada com frescor por Erico, observando que nós seres humanos somos assim mesmo, com áreas mais sombrias em meio a luz que buscamos. A alva Clarissa, saltitando em meio à energia indomável da juventude, encontra no mais fundo de seu caráter momentos de indisfarçável preconceito e injustiça para seus semelhantes. Grande Capparelli.

Não acho que Erico perca com isso. Clarissa se impõe, naturalmente, sobretudo pelo encanto da verdade humana de uma adolescente capaz de frivolidades legítimas e encontráveis em cem por cento da faixa etária. O autor, sob a observação dura de Capparelli, perderia ao contrário, sendo lido por quem se recuse a fazer-lhe alguma objeção. Como se ele precisasse de descontos...

Porém, infelizmente, todos, vivos, decidiram que precisam de descontos sem chamar isso de desconto. Querem porque querem, além do tilintar das moedas e do suspiros das mulheres, o clape-clape dos aplausos. E aos inocentes, que sonham com a literatura como uma espécie de missão maior, a dolorosa, áspera, difícil escalada em meio à construção complexa, riquíssima e desafiadora que a tradição nos mostra e nos provoca, a esses, que imaginam escrever sem garantia alguma (e nunca a conseguem), resta um silêncio como resposta vindo dos mais festejados e de seus acólitos, coro dos contentes.

Dos consagrados à arraia miúda, aspirante às letras, há evidente um acordo tácito de ninguém ferir ninguém. "Ferir"? Nunca foi minha intenção. Desde quando ler alguém (e ler pressupõe pegar tudo, acertos e desacertos, inovações e repetições, manutenção de um estilo e auto-plágio etc.), desde quando ir pra cima de um livro, com a disposição de "matar ou morrer", metáfora da análise limpa de quaisquer pressões e chantagens (deve ser impossível fugir a isso hoje em dia), representa hostilidade, má intenção? "Quem escreve um poema salva um afogado", disse o Quintana. Belicosa tarefa, nem por isso dispensável – sobretudo se o afogado afogou-se e o poema só desfilou com suas céleres e fúteis patas de artefato cuja glória foi feita da esterilidade exibicionista.

Tais autores cresceram, são publicados por grande editoras, vendem bem. Escorados nessas benesses, querem, ainda por cima, o doce exercício da complacência de quem se aventura a fazer crítica. Crítica é o que mais falta no Brasil. Nos sites de bate-papo da Internet já há reuniões de escritores famosos com leitores e jornalistas e colegas escritores (todos, exceto o autor convidado, protegidos por pseudônimo). Incrível: ninguém decola. 90% só fica lambendo a sola do sapato do astro do momento. "Adorei seu último livro." "Você fala de nossos demônios interiores como ninguém." Experimente o bem-intencionado crítico fazer uma pergunta às ganhas, tipo "sua ficção não está perigosamente balizada por referências óbvias como a cultura do misticismo de consumo, escrita num registro de dramatização de clichê e, por isso, pagando tributo a um gosto médio, a uma sensibilidade mediana?" O mediador não vai passar sua pergunta ao autor ou, se passar (você tirou na loto!), a resposta será: "deixo essas questões aos estudiosos de minha obra".

Ó soberba, ó demagogia!

É assim que todos, quando chegam lá, agem. Mestre e, pior, epígonos. E a literatura, enquanto o tempo passa, fica à espera de um futuro, quando tudo isso será passado, e os Paulo Setúbal de hoje, os Humberto de Campos da hora, os José Mauro de Vasconcelos com os 15 minutos de fama – quem lembra deles? – terão deixado, reconheço, boa grana para os netos.

Grana. Jamais leitura.

* Escritor, autor de Instruções para iludir relógios.

Fone/fax: (51) 338-5622

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