CARAS É ODARA
por Jorge Furtado
Quem já resistiu a ler a Caras numa sala de espera que atire
a ficha oito. Fiz mais. Simulando um ataque de tosse para encobrir o barulho
de papel rasgando que poderia chamar a atenção da secretária,
arranquei uma página da revista. (Desculpe, era uma edição
antiga, nunca a encontraria). O mais engraçado da revista é
a simulação de reportagem que acompanha as fotos. Na página
roubada o texto informa que a empresária Yara Baugart (51), proprietária
da clínica de estética Kyron, "admira o cenário cósmico
do Vale da Lua, no deserto de Atacama, região norte do Chile. Contemplativa,
ela pensa nos caminhos que a levaram até esta paisagem onírica".
A foto mostra a empresária sentada sobre uma pedra à beira
de um lago, sob a luz tênue do poente. Está só, quase
de perfil e mira o horizonte, como é adequado aos contemplativos.
Os cabelos cuidadosamente arrumados para que não pareçam
cuidadosamente arrumados, brincos combinando com o anel, os displicentes
óculos escuros pendurados na gola do pullover, as unhas feitas e
a cuidadosa disposição das pernas, denunciam uma vasta preparação
para a pose, o que deve ter deixado pouco tempo para que a empresária
pensasse nos caminhos que a levaram até esta paisagem onírica.
O contraplano da foto possivelmente revelaria, além do fotógrafo
e assistente, um maquiador/cabelereiro, o namorado/marido, o motorista/guia
turístico, a filha da cozinheira do hotel e seis turistas japoneses.
O fotógrafo certamente dá instruções sobre
a posição correta do queixo e a adequada posição
das mãos, a espera da luz perfeita que formasse o belo reflexo dos
morros no lago, ao fundo. O cabeleireiro cuida para que o os fios soltos
que escapam da presilha do cabelo, dando o adequado toque de naturalidade
ao quadro, não abandonem seu posto. Não me parece ser um
ambiente muito propício para "uma jornada exótica em busca
do autoconhecimento", mas tudo bem.
O que me chamou a atenção para a foto e me fez (tosse,
tosse) arrancá-la foi o pequeno caderno de anotações
(capa de couro, preto) e a caneta (preta, filigranas e ponta dourada) que
a empresária tem nas mãos. A caneta, num pequeno descuido
de produção, está de cabeça para baixo. (Se
uma súbita inspiração atravessasse o lago alcançando
a meditativa empresária e ela quisesse imediatamente anotá-la,
sua primeira tentativa seria de escrever com a tampa). O caderno é
claramente uma agenda, aberto no dia 30. Sem o auxílio de uma lupa
ou recursos de computação é impossível ler
o que está escrito. Duvido que outros leitores de Caras tenham sequer
tentado.
Interrompo aqui esta singela análise da foto para deixar claro
que nada tenho contra os retratos posados, ao contrário. Durante
muitos anos os retratos foram a principal forma de pintura e são
um valioso instrumento para conhecer a história. Um ótimo
estudo sobre o assunto foi publicado pela Taschem, "A Arte do Retrato",
de Norbert Schneider. É a partir dele que reproduzo o retrato que
Agnolo Bronzino fez em 1550, "retomando um estilo deliberadamente arcaicista
dos quattocento", da poeta Laura Battiferri (1523-158?). Ela tem nas mãos
um livro de Petrarca onde se pode ler um soneto dedicado a Laura, "com
quem a modelo evidentemente se identifica".
O divertido de Caras, uma revista de retratos posados, é
a simulação de realidade. Curiosos para descobrir como vivem
os seres bafejados pela fama, a fortuna e o laquê, os leitores mergulham
num universo onde pessoas quase reais encenam sua própria vida.
E ainda emprestam o cenário!
O diário da empresária Yara Baungart revela identificações
menos eruditas que as da poeta italiana. As anotações, escritas
em tinta azul, são quase totalmente ilegíveis, pela pouca
definição da foto ampliada. Mas uma única linha, a
primeira logo abaixo do número 30, pode ser lida: "dentista 14 h".
Hospedada num hotel cinco estrelas ("o único luxo a que me
permiti") Yara informa que "está atrás da verdade e ela está
nas coisa mais simples da vida". Que em seu caminho para a verdade em mais
esta "jornada exótica em busca do autoconhecimento" Yara não
esqueça de passar no dentista, 14 horas.