Para conhecer os hábitos do Brasil Império nada melhor que ler as "Ordenações Filipinas", o código penal promulgado por Felipe I em 1603 que vigorou no Brasil até 1830. Foi publicado este ano, pela Companhia de Letras, organizado por Silvia Hunold Lara. Alguns dos 143 artigos: "Dos que benzem cães ou bichos sem autoridade del-rei"; "Dos que dormem com suas parentas e afins"; "Dos que molham o pão que vendem" (para aumentar o peso); "Dos que compram colmeias para matar as abelhas" (para usar só a cera); "Dos mexeriqueiros"; "Das cartas difamatórias". As penas mais graves, como a destinada aos "que cometem pecado de sodomia e com animais", são "que morra por isso, queimado e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos o seus bens sejam confiscados. Seus filhos e netos ficarão infames". Não sei se a punição para a cabrita era a mesma.
O artigo mais estranho é o 45, parágrafo 5: "defendemos que nenhuma pessoa feche portas algumas por fora contra a vontade de seus donos ou sem o eles saberem; e o que o contrário fizer, se for peão, seja açoitado publicamente; sendo de maior condição, será degredado dois anos para a África". Pelo jeito havia algum gaiato em Lisboa fechando as portas pelo lado de fora, talvez com o sórdido propósito de atrasar o pessoal para pegar os melhores lugares na missa.
As punições também revelam muito sobre o imaginário português da época. Muitas penas de morte são seguidas de variadas atrocidades, como queima do corpo e esquartejamento, como se isso fizesse alguma diferença para o morto. E o pior degredo possível era para o Brasil. Crimes menores terminavam em cinco anos na África, crimes graves em cinco anos no Brasil e, para os gravíssimos, a pena era a nossa: para o Brasil, para sempre.
Pois o governo FHC está lançando hoje, depois de cinco anos de gafes e grosserias, o seu código mínimo de boas maneiras. Chama-se "Código de Conduta dos Titulares de Cargos na Alta Administração Federal" e foi elaborado por juristas a pedido do presidente. Parece que a motivação imediata teria sido a declaração pública de ACM de que os combustíveis não iriam mais subir este ano, manchete de vários jornais na semana passada. ACM já manda no país faz tempo mas, depois desta, FHC ficou com medo que ele começasse a sugerir penteados para a Dona Ruth e pediu o código.
As penas são aplicáveis pelo próprio
presidente e vão desde recomendações amigáveis
até demissões com cara feia. Fica proibido (Seção
2, artigo 3, parágrafo primeiro) "dar, explícita ou implicitamente,
tratamento preferencial a quem quer que seja, por interesse ou sentimento
pessoal". O presidente agora não pode mais usar seu prestígio
para favorecer grupos privados em leilões de estatais, por exemplo.
Ótima idéia. O parágrafo segundo do mesmo artigo proíbe
"valer-se, em proveito próprio ou de terceiros, de informação
privilegiada, ainda que após o seu desligamento do cargo". Não
vale mais ser presidente do Banco do Central de segunda a quinta e sócio
de corretora na sexta. Também não vale mais levar a família
de jatinho da FAB para Fernando de Noronha, "simular a transferência
de bens", receber "presentes e gestos costumeiros de cortesia e hospitalidade"
de valor superior "a um salário mínimo", "opinar publicamente
sobre a honorabilidade e o desempenho funcional de outras autoridades"
ou "utilizar-se, antes de se tornarem oficialmente públicas e em
benefício próprio e de terceiros, de informações
obtidas no exercício do cargo". Parece que não tem ninguém
sujando a escada em Brasília.