ESTAMOS EM GUERRA
por Paulo Cezar da Rosa
I
Nunca pensei que os jornalões chegassem a tanto. Deu na Folha de São Paulo, 13 de julho, página 9. Ao divulgar o estudo da ONU sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a Folha revelou que "entre os nove países, o único que apresentou piora nos indicadores sociais foi a Rússia, que teve um aumento no déficit de 18,4%" entre 90 e 97.
Até aí, tudo bem. A coisa começa a ficar esquisita olhando as circunstâncias. Algumas estão na própria matéria. Primeira: No mesmo IDH da ONU, o Brasil aparece com um índice positivo de 10,7%. O índice brasileiro inclusive é contestado pelo Fernando Henrique, pois apareceríamos melhor na fotografia se a ONU não tivesse alterado uma metodologia de cálculo lá do IDH. E esta já é uma circunstância e tanto. Segunda: Por incrível que pareça, o Brasil melhorou seus indicadores sociais e poderia ter melhorado ainda mais se a metodologia não houvesse mudado.
Só quem não melhorou, nos nove países mais populosos do planeta, foi a Rússia. Terceira: Neste quadro, a coisa deve estar mesmo russa na Rússia para o IDH ter caído 18,4%. Mas sabem qual a explicação da Folha para o fato? A expectativa de vida dos russos caiu em decorrência da crise econômica e "houve aumento nas mortes por problemas cardíacos causados pelo estresse", conforme um assessor do Pnud no Brasil. Isso mesmo! Os coitados dos russos andam estressados e morrendo mais de uma morte moderna, oriunda -vejam só, que chique!- do estresse. Em conseqüência, o Índice de Desenvolvimento Humano lá dos russos caiu 18%... Claro, nada a ver com a introdução da "economia de mercado", com o fim do Muro em 89, com o fim dos direitos sociais, com o desemprego, com a fome, com o mais brutal ataque que o povo russo já sofreu, incluídos aí as duas guerras. Não. Isso, para a Folha, não existe. Só existe o estresse...
Alguém já disse -e se não disse deveria ter dito- que a ditadura leva à estupidez ao mesmo tempoque é fruto dela. Só pode ser isso. Para um jornal como a Folha, que se pretende inteligente, tratar desta forma o seu leitor, é porque estamos chegando aos píncaros da glória neoliberal no jornalismo tupininquim.
II
Não. Não é ficção.
Fui comprar gasolina naquele posto que fica em frente ao Olaria. É um posto que mantém preçosbaixos. 1 real e 3 centavos o litro da comum, quando tem posto da cidade cobrando mais de 1 e vinte. O buteco do posto - uma coisa indescritível quanto à higiene e à aparência - serve cachaça, cerveja, sanduiches e um PF pra ninguém botar defeito. É uma legítima loja de conveniência da peãozada do bairro.
Estacionei para encher o tanque. Veio lá o frentista e puxou conversa.
- Como é que vão as coisas?
- A gente vai levando...
- E as filhas? Vão bem? São duas, não são?
- São. Estão bem.
- Óh! O óleo aqui está bom ainda. Um pouco escuro, mas não precisa trocar ...
Fico lembrando que em outro posto, há mais de dois meses, o frentista recomendou trocar o mesmo óleo e imaginando o porquê. O outro posto tinha um ar moderno, pintura nova, muito neon, loja de conveniência com produtos importados... Fora tratado como um consumidor estúpido, de acordo com as novas regras do consumismo em tempos de pós-modernidade neoliberal. Minha função naquele posto era consumir, e eu, vejam só, estava me recusando. Por isso, veio o conselho. Aqui, ao contrário, estava sendo tratado como gente e até protegido frente ao cartel do petróleo que aumentou o preço do barril de 10 para 20 dólares sem que a imprensa brasileira tenha se dignado a noticiar decentemente este que é, sem dúvida, o principal fato econômico mundial deste ano. Aqui, neste posto que mantém um certo ar da Cidade Baixa que conheci há vinte anos, onde o frentista usa um fardamento remendado em meio às roupas comuns e aparenta uns sessenta de idade, o mundo neoliberal parece distante. Deve ser isso.
Enquanto imagino essas coisas, quase não percebo que o frentista que conheço há alguns anos de abastecer ali mais ou menos de dois em dois meses retoma a conversa.
- E a política?
- Tá indo! O Olívio agora eu acho que está se aprumando...
- Olha, minha vida inteira nunca vi uma situação tão feia.
- Como assim?
- Digo nacional, aí, com o Fernando Henrique...
- É. Tá feio!
- Tu não era nascido, teve uma situação assim. É a única que eu lembro tão braba.
- Quando isso? Sessenta e poucos?
- Não! Antes. Naquela época concorreu aquele Fiúza. Tu não tinha nascido. Eu sou do tempo do Getúlio. Votei nele pra presidente... Naquela vez não tinha dinheiro. A gente comprava comida com umas cartelas...
Eu estava com pressa, mas resolvi botar um pouco de lenha na fogueira.
- Sabe o que esse governo fez agora. Cortou até as frentes de trabalho e as cestas básicas que distribuía no nordeste. Li isso num jornal, no final de uma daquelas matérias que ficam lá no meio. A mortalidade infantil no sertão de Alagoas subiu pra 400 por mil. Nem na África, naqueles países que morrem de fome, tem tanta morte assim. Já pensou?
- Olha, doutor. Eu não sei no que vai dar. É uma guerra. É uma guerra contra a pobreza que nós tamos vivendo. E o pior é que esse pessoal lá de cima, quando chega a eleição, ainda vota nessagente que tá matando o Brasil ....
Ele tinha me chamado de doutor. Era sinal de que eu podia ir embora. Fui. Pensando na guerra.
É verdade!
XXX
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