- Levanta, Júlia. Vamos dar um jeito nisso tudo. Vai passar, eu prometo.
Coloco glacê sobre o bolo abatumado. Minha amiga acordou enjoada e mesmo assim buscou paliativos para a náusea. Não curaria a enfermidade, mas os sintomas. A língua sabor corrimão, corroída, uma bosta. E não adiantou gengibre, Listerine ou a pasta com micropartículas, fazendo cócegas na gengiva. Só beijinho. A senha era: b-e-i-j-i-n-h-o. Eu conheço a peça: Júlia queria beijinho sim e mais nada que não beijinho. Essa menina é muito influenciável, não tem caráter, nem palavra, pelo menos, próprias. Seu discurso é uma verborragia, notas de rodapé. Leu o Mempo recentemente e sua 'Máquina de Dar Beijinhos'. Talvez a saída seja plagiar o Mempo, seus verbos, seus inventos.
Júlia me disse 'até que foi bom'. Troca de fluídos, segundo ela. Ou de óleo, como preferimos, nós os machos diante dos outros machos. Bebeu dois litros de coca light e nenhuma luz se acendeu. Vou processar a coca. E conseguiu um risinho cínico que só saiu pra ela. Por dentro, por fora, nas arestas, o corpo estava tenso, pontiagudo.
No quarto, a penumbra mais o abajur laranja. Uns trinta cigarros, acho. É, ela fumou trinta.
- Nem posso mais. Meu coração tá exposto há horas, falou com um fio de voz.
Não sei como ela não desabou naquele instante. Depois da bonança, a tempestade. O inverso verdadeiro, não a maionese.
Passou a tarde embaixo das cobertas. Estava frio da ilusão pra fora. Uma prega no coração era bruscamente costurada à máquina. Soco na boca do estômago.
- Putaria da americana que é bom. Só oh yes, oh no fuck me please.
E eu quieto, falasse qualquer coisa era assassinado. Percebia que o avesso de Júlia era quente e úmido - propício às infeções. Já estivera doente outras vezes a minha namorada secreta de duras cochas, dedos amarelos. Estilhaçada. Como recompor? Não sei, nem tentei. Só estive de corpo presente
naquela tarde ocre. Não podia dar palpites, conselhos ou que diabos um amigo deva fazer numa hora dessas. Júlia estava prestes a morrer e sempre fora assim: depois dos 26 não mudaria.
- Beto, a defesa é o melhor ataque?
Permaneci calado para o de fora. No meu íntimo, latejava: nada... melhor e submergir no mundo dos sonhos, meu amor. Mas minha nunca namorada já havia tentado dormir. Não deu. Foi quando, como lesse meus pensamentos, largou:
- Hoje eu só tentei, cara. Ficar bem. Dormir. Praguejar. Arrepender. Não deu.
Tocou fogo no trigésimo primeiro. Todas tentativas frustradas. Qualquer alternativa emergia embolada, soava falsa, medíocre. Médio. E se é pra ser, que rache!, ela mesmo não tinha me dito isso quando acabei com a Rose? Demagoga. Além de mau caráter, demagoga. No dos outros é refresco.
- Cara, pela primeira vez não tô eufórica. Foi legal, só que hoje tá inchado e faz frio, assa. Foi, foi bom sim, não dá pra disfarçar. A pele fica mais bonita mesmo com as bochas e o céu estrelado em negativo. Tudo bem... vou ficar boa.
Passa, não insistem os conselhos? Diz que. Eu preferi resignar. Não diria nada àquela anã, que diminuía mais e muito e a cada segundo. Horas mutavam-se em frames. A mulher dilacerada e eu, um incompetente no amor, lhe daria conselhos?
- Entre nós, Beto, nunca. Vira e mexe ele tá ali de novo: forte, gigante, impávido colosso. Se escarro, rebenta. Aí vem a lama... Se engulo, afrouxa. Cascata. Não brinco mais. Não quero brincar nunca mais de cabra cega. Abro a janela pra retirar um pouco do cinza. Júlia bebe mais um copo de refri. Um cara que joga sinuca comigo disse que água tônica com uma dose de gim é o melhor remédio pra ressaca. Mas se a ressaca além de física é psíquica e espiritual? Reviro os olhos de desespero. Pavor de pena e é com ela que cubro Júlia, meu pavão descabelado.
- Beto, pensa na loucura: tu acredita que eu tô com a mesma calcinha de ontem?
E tipo marionete, porque não governava os movimentos, saiu do quarto pra fazer xixi e pensar na noite. Júlia está demorando. Me coloco, abaixado, atrás da porta do banheiro. Júlia está olhando para a barriga. Agora, enfia o dedo no umbigo, dá voltinha com o indicador e fala em tom quase inaudível: viemos daqui e ontem copulamos bonitinho. Bege rosado. Queixo tremendo, dente cerrado. Ele é Deus!
Faz frio e Júlia já não sabe se vestir, a temperatura oscila. Trinta e nove e dois tracinhos marca o termômetro. Dali há pouco, baixa vertiginosamente. Prefere o casulo again. Reparo no corpo dela. Parece forte, mas prestando bem atenção, é um resto de força vazia. Júlia é uma borboleta marrom. É mãe e puta e Maria e boa e chata e querida e suada e burra e orrada. Um pedaço de carne fria. Puxar o êmbolo e injetar qualquer coisa que lhe acalme. Não ousaria.
A escrivaninha, a foto do outro em cima da, jamais a minha. O modelito de ontem no cabideiro e a sainha cretina no chão mais o Oswald sobre a poltrona. Voyeurismo. Sabem mais de Júlia do que ela própria. Floreio, exílio, meio pau. A bandeira arriada outra vez. Quarenta e nove por cento. Como no filme, não dá pra ser um e minha namorada secreta é menos que quarenta e nove por cento. Júlia se deita sobre os peitos mordidos e sacaneia a paz.
- Porra! Lavaram essa fronha com outro sabão. Odeio mudanças!
E atira o travesseiro longe, ajeitando a cabeça sobre o braço largado. Estranho... Júlia sempre de punho cerrado e quem tá na lona é ela.
Duas neosaldinas. Ela fecha um olho brincando de enxergar só a metade da vida. Já não tem vontade de nada. Dói pra caminhar. Às vezes é difícil viver, eu entendo, minha amiga, meu amor. E ela segue tentando adivinhar o futuro no fundo do copo. Está a trinta mil pés, aquosa, bebe mais um gole de coca.
- É, eu tô doente mesmo. Nem tinha depilado a virilha. Será que ele notou, hein, Beto?
- Pô, Júlia!, poupa minha inteligência! Pensar numa bobagem dessas depois de tudo aquilo!
Ah, tive que falar. Que mina trouxa. Não bastasse eu aqui
amando quieto, dormido, ainda ter de ouvir sobre uma frescura dessas... Por favor! De certo os caras se ligam nisso.
- É.. nada a ver. A barriga dele cresceu, tá flácida. Ah, mas tem delícia no caminhozinho da felicidade... Ele é quentinho. Beto! eu tô bem, isso é reação, não é?
Júlia bebe mais um trago. Eu olho em volta: poesia erótica da Cia das Letras e Júlia linda!, minha rainha, minha nunca namorada, abraça a almofada. Encolhe as pernas fingindo de feto.
- Eu quero a minha mãããããe!! E a mão, o mau jeito, o olhar meigo dele!
- Por que chorar, menina? Cada um come o que gosta na mesma proporção em que dá o que pode. Eu te avisei, orgia alimentar dá nisso. Come pão dormido, pastel de terça passada. Servisse um pouco de cada vez. Quisesse mais, voltasse ao buffet mas nunca engolisse assim, sem mastigar. Ah, tive que vomitar.
'Às vezes a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia.'[Mário Quintana]
E não esqueça! Nunca, eu disse nunca, use frases feitas.