Texto Ao Morto
por Jorge Furtado
Caro Editor.
Uma diferença fundamental entre os baianos Raul Seixas e Caetano Veloso é que o Raul morreu. Pena, adoraria ouvir sua opinião sobre o hino xororó do ministro Greca. Talvez ele gostasse. Estou sentindo falta também dos textos do Giba aqui no Não, faz horas que ele não escreve. Esta história de não temático é meio chata, tem que ficar pensando em coisas odara para escrever. A vantagem do não Raul Seixas é que tu pode escrever sobre qualquer coisa e faz sentido. Tu disseste que o momento não é muito odara e eu concordo. Te vira.
O Giba podia escrever aqui sobre sua experiência mística, aquela velha história da vez em que ele derrubou uma árvore sobre a própria barriga com a força do pensamento (se é que ele ainda não escreveu, na fase manuscrita do Não). Aquela história é qualquer coisa muito odara, bicho.
Nunca vi disco voador mas acredito no Chico Buarque, que diz ter visto muitos. Tive uma única experiência mística inquestionável, em 1978. Estava caminhando num corredor vazio do hospital da PUC, seis e meia da manhã. Fazia um curso de assistente cirúrgico que me obrigava a acordar todo dia às cinco e meia. Passava uns quinze minutos só escovando os dedos com sabão, dez passadas de escova em cada lado de cada dedo, sempre de cima para baixo. Onde estava? Ah, sim. Caminhava eu pelo corredor vazio do hospital da PUC. Um homem, negro, uns 50 anos, estava sentado num banco na metade do corredor, a minha frente. Passei por ele, ele me chamou. Jorge? Parei. Sim? O teu nome é Jorge, não é? É, por quê? Eu percebi, disse ele. Tu é de Ogum. (Verbete: Ogum [Do ioruba.] S. m. Bras. 1. Orixá que preside às lutas e às guerras; deus nagô da guerra. 2. Espírito de raça branca encarnado em alguns santos da iconografia católica, principalmente São Jorge. Fim do trecho sob jurisdição do Aurélio). Fiquei olhando para ele, sem saber o que dizer. Nunca tinha visto o cara. Olhei para trás, pensando se alguém teria dito o meu nome em voz alta nos últimos minutos que ele pudesse ter ouvido. Não, não tinha. Bem, ele poderia ter me visto em outro lugar, outro dia, e ouvido alguém falar meu nome. Isso, é claro, se não fosse cego.
Acho que essa história é bem odara. Como seria odara haver um Deus que desse sentido às coincidências. (Alô Giba, republica o texto daquele numerólogo, é uma obra prima). Mas há coincidências, muitas, e quanto mais tempo mais coincidências. É a perda da noção do tempo passado entre as coincidências que faz muita gente acreditar que elas fazem parte de um plano. A vida na terra tem mais de 5 milhões de anos, tempo suficiente para que as coincidências providenciassem a evolução, dna, célula, lagarto, macaco, Laetitia Casta. Com esse prazo é mole.
Histórias tem que ser mais curtas, concentrar coincidências no tempo e no espaço. Algumas a memória junta, algumas a gente inventa ou muda de lugar e pronto, vira história. Faz quase três meses que meu pai morreu. Estou na casa dele esta noite, fazendo companhia para minha mãe, que dorme. (Estou escrevendo no computador dele). Há pouco estava lá embaixo, vendo o Jornal da Globo e olhando fotos. Começou uma matéria sobre luto, com gancho na morte do John-John Kennedy. A Lilian entrevistou uma psicóloga (perdi o nome) que falou sobre o ciclo inicial do luto, que dura um ano. É a primeira passagem pelas datas que fazem lembrar de momentos compartilhados com quem morreu. Faz sentido. Falou também sobre a importância de vivenciar o luto, por exemplo, vendo fotos. Olhei para a foto do meu pai em minha mão. E aí faltou luz.
Tu conhece a casa, muitas peças, mesas, mesinhas e armários e várias escadas. Morei vinte anos aqui, caminho no escuro sem problemas. E no escuro me lembrei de outra coincidência, também envolvendo a morte do meu pai e a casa. (Começo a considerar a possibilidade que ela esteja assombrada. Seria ótimo, meu pai daria um fantasma muito divertido, ele sempre quis ser invisível). Ele estava no hospital há quase um mês. Eu estava aqui, à noite, com minha mãe, minha irmã e a filha dela. Estávamos tomando café, lá embaixo. Ouvimos um barulho aqui em cima, um estouro. Subimos para ver o que era. O lustre do gabinete do meu pai caiu. Era um lustre grande, com uma grande bola de vidro que agora estava em muito pedaços pelo chão. O lustre estava lá há pelo menos vinte anos. Olha o tempo outra vez. Se o lustre tivesse sido colocado naquela tarde a história não teria o mesmo interesse. Se o meu pai tivesse morrido naquela noite a história seria mais odara. Mas não morreu. Morreu alguns dias depois.
A luz também não faltou no exato momento em que a psicóloga falava da fotos, eu inventei aquilo para a história ficar melhor. Faltou luz alguns segundos depois, a Lilian já tinha chamado uma reportagem sobre a Caroline, irmã do morto e herdeira do trono americano. E não tenho tanta certeza que foi assim mesmo que aconteceu a história do cego no hospital da PUC. Talvez tivesse mais gente no corredor, talvez ele não fosse cego.
Ao contrário da vida, as histórias guardam sempre para o fim as palavras que fazem mais sentido. Nos últimos dias meu pai misturava palavras que faziam todo o sentido com outras onde as coincidências mal se tocavam. Pouco antes dele morrer cheguei no hospital da PUC de manhã, seis e meia. Atravessei o corredor vazio, entrei no quarto. Ele estava sozinho. A enfermeira precisou amarrar seus braços na cama para que, ao acordar, ele não tirasse o tubo de oxigênio no nariz. Mas ele estava sozinho, já tinha acordado e soltado um braço e lutava para soltar o outro. Quando me viu tentou dizer alguma coisa. Me aproximei, disse eu estou aqui, e ajudei a soltar seu braço. Ele me olhou e fez um grande esforço para dizer as últimas palavras que dele me lembro com clareza: por que a televisão francesa é tão ruim?
Bom Gerbase, se tu achar que essa história não é nada odara, muito antes pelo contrário, a gente deixa pro não Raul Seixas. Lá faz sentido.
XXX
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