Absolut
por Espartaco Madureira Coelho
 
 
----- 1 ----------------------------------------------------------------------------

(Vangelis - I Hear You Now)

(Fade In - Cubos de gelo caindo vagarosamente em um redemoinho dentro de um aquário + Créditos)

(Traveling – Calçadas de uma cidade à noite, vista de dentro de um carro em movimento)

Capablanca era um policial honesto. Ou como ele mesmo sempre dizia: “um psicopata com princípios”. E por isso mesmo, tinha largado o trampo de inspetor. Agora era dono de um táxi. De noite, era meu motora e segurança, caso eu tivesse algum problema com os clientes. De dia, bem, era dono de um sebo que só tinha livros policiais e sobre xadrez (o jogo, não sobre a cadeia). Ele morava nos fundos, o quarto era uma cama dentro de uma cozinha. E tinha uma coleção de garrafas de vodca espalhadas pela casa, todas vazias ou pela metade. Era um cara estranho, um pouco calado, mas tinha um sorriso gostoso e muitos contatos. Também já tinha me dado uns olhares calientes, mas ainda não trepei com ele. Afinal, amigos, amigos; negócios...

(Barulho de freios e o carro pára)

“Paloma, chegamos.”

(Zoom Out – táxi e prédio, destacando a placa da 10ª D.P.)

Será que aquele sarará encostado na parede com uma Zero Hora debaixo do braço é o Martín? Sim... Ele põe o braço e a cabeça prá dentro do carro, quase me beija.

“E aí, gente fina?”

E abrindo o jornal, deixa cair um .38 no meu colo. Gelei, mas puxo o jornal da mão dele e tapo o revólver.

“Tá carregado e sem digitais.”

Depois pega o meu rosto e me dá um beijo rápido. Asqueroso, fedendo a cerveja. Mas fico imóvel, muda. Afinal ele só tinha cobrado um galo pela encomenda. E o Capablanca saiu cantando pneu.

“Satisfeita? Agora, cuida prá não fazer nenhuma cagada.”

E eu cega, surda e muda, segurando o .38 com a ponta dos dedos e largando-o dentro da bolsa. Até que acordei do transe.

“Sim, o que foi?”

“Uh... eu disse que te amo.”

Eu sabia que não era verdade, que ele só queria me dar uma força. Mas não era preciso. Eu me chamava Paloma (do perfume Paloma Picasso, é claro), e ninguém iria me passar a perna, assim, impunemente. Eles iam ver como eu também sabia ser durona.

(Começa a chover e o limpador de pára-brisa demora para funcionar)

Ponho a mão por dentro da calcinha e começo a chorar baixinho.
 
 

----- 2 ----------------------------------------------------------------------------

(Madonna - Beautiful Stranger)

(Close Up - Mão de homem com chave, abrindo a fechadura de uma porta)

Esta é a loja e a casa de Capablanca. Ele acende a luz e fecha a porta enquanto caminho por entre as prateleiras de livros. Christie, Fischer, Hammet, Kasparov, Tarantino, Veríssimo. Largo a bolsa com o .38 em cima de uma prateleira quase vazia - Holmes. Eram nomes estrangeiros em um mundo estreito e o corredor estava ficando cada vez mais globalizado, quer dizer, um mundo globalizado e um corredor cada vez mais estreito. E quente.

(Foco em espelho que reflete imagens em tom sépia)

 Tenho de tirar o casaco e este sapato que estão molhados.

(Zoom In - decote de Paloma ao abaixar-se)

E seduzir o pobre do Yuri. Sim, o nome era Yuri Capablanca. Eu já tinha remexido a carteira dele e perguntado a origem daquele nome. Descobri que foi um inútil tributo do pai aos anos dourados da ex-União Soviética. Aquele velho era um barato.

(Plano Americano – Paloma levanta os braços prendendo o cabelo na nuca e virando o rosto para o lado)

Poderosa sedutora. Não sei, mas este espelho bem que confirma o que o meu sobrinho de doze anos diz: que eu sou peituda e que pareço a Lara Croft dos pampas.

(Close – Paloma ajeita o sutiã por cima do vestido)

Que bom, lá vêm dois copos de vodca puxando um homem na minha direção. Pego o meu copo, olho direto nos olhos dele e fico pensando que já fazia um tempão que eu queria comer este cara. Mas...

Primeiro beijo e pergunto: “Gostou do meu perfume? É o Nº 5.” Ele continua calado e eu fico intrigada com o silêncio dele.

Segundo beijo e sussuro: “Que bom que estou com uma lingerie novinha.”

(Pan Down + Slow Motion - copo com vodca e gelo caindo e se espatifando no chão)

Terceiro beijo e ele levanta o meu vestido, cheira longamente o meu pescoço e acaricia as minhas costas.

(Imagens voltam ao normal, deixando de ser refletidas no espelho)

(Close Up - rosto de Paloma mordendo os lábios)

A barba dele está arranhando, mas como é bom um abraço bem apertado de quem a gente sente tesão.

Agora, a voz tem que combinar com o perfume.

“Apaga a luz?”
 
 
----- 3 ----------------------------------------------------------------------------

(He Bears It Well – Rod Stewart)

(Traveling – Paloma e Capablanca caminhando à tarde no calçadão de Ipanema com o Guaíba ao fundo)

Que saudades do sol forte do verão. Acho que vou voltar para Brasília. Se Capablanca não tivesse me emprestado este casaco, não teria como me proteger do frio, nem aonde esconder o .38.

Paramos para ver um cara só de calção, gritando e correndo em direção à água. Quando mergulha, duas mulheres aplaudem e riem alto, mas continuam sentadas na areia e se beijam rapidamente.

Puxo o braço de Capablanca para junto do meu peito. Estou como a vodca dele - “on the rocks”. Frio e nervosismo misturados. Descemos as escadas e caminhamos até o fim da praia. Perto de um bambuzal encontramos o nosso contato – um magricela chamado Sarmiento.

Capablanca pára e eu vou sozinha de encontro ao meu alcagüete do momento. Merda, fiquei de frente para o sol. Levanto a mão esquerda para proteger os olhos e dou meia dúzia de passos. Paro em frente àquela silhueta que está acendendo um cigarro na beira d`água.

(Close Up – Isqueiro, chama e brasa do cigarro ardendo)

Baforada e tosse seca.

“Não posso falar nada, estou sendo vigiado. E a minha família está sendo ameaçada.”

Tiro a mão direita do bolso e aponto o berro para o sacana.

“Filha da puta! Tu me deves esta! Fala alguma coisa, porra!”

E ele quieto, com cara de medo, pânico, terror. Eu não pensei que ele fosse tão cagalhão. Então, Sarmiento pega um galho do chão e risca cinco letras na areia, pelo jeito, pensando que eu teria pena de um falso padre Anchieta: “B  N  D  E  S”. E passa o pé para apagar a dica.

Eu fico impaciente e grito: “Um nome!?”

Mas ele me olha fixo, quieto, cabisbaixo. Sem dizer uma palavra que o salvasse ou que pudesse perdoar os seus pecados.

Continuo encarando e levanto as sobrancelhas. Ele abaixa os olhos, tentando adiar o tiro e dá uma longa tragada no cigarro. Sacana.

Quando ele levanta os olhos, eu puxo o gatilho.

(Barulho de tiro)

Sarmiento é jogado para fora da tela, que mostra lindo pôr-do-sol.

(Imagens se dissolvem dentro de um copo de vodca com gelo)
 
 
TO  BE  CONTINUED
Brasília, 10/agosto/1999.
 
 
Espartaco Madureira Coelho
emcoelho@antares.serpro.gov.br  
 

NÃO 66