Fantasmas não mijam de pé
por El Comanchero
 
 
Geraldo sabia que não podia mais voltar atrás. Tinha decidido largar o emprego e montar uma banquinha de artesanato na Praça de Alfândega. Foi o que ele sempre quis. Vender as miçangas que ele e sua parceira Adriana fabricavam nos fundos de sua casa em Viamão. Voltar aos velhos tempos. Largar aquele bom emprego de caixa do Banrisul, com sua estabilidade garantida. Estava de saco cheio com aquela papelada toda que ao final do dia deveria fechar em zero. Era uma das causas do nervosismo e estresse (aportuguesado, seus americanófilos) de grande parte dos bancários. Eles acabavam em zero enquanto os banqueiros acabavam em vários zeros depois de um algarismo qualquer de um a nove. Mas banqueiros não fazem parte desta história.

Adriana, sua companheira (eufemismo para mulher que transa com ele regularmente, e só), trabalhava de faxineira em um prédio de apartamentos de luxo na Bela Vista, bairro de emergentes dissimulados de Porto Alegre, e ganhava um bom dinheiro com isso. Mas eles eram ex-hippies (americanismo) e decidiram voltar a ser. Nos seus quase cinquenta anos, e quase trinta juntos desde a época em que o Roberto Carlos falava em inferno e a ditadura era explícita, voltar a ser ripe (danem-se americanistas, este texto é anarquista) era uma boa.

Mas Geraldo não era tão burro assim. Pediu aposentadoria e conseguiu. Comprou os equipamentos e durante semanas ele e Adriana fabricaram suas miçangas e adereços ripes. Um dia foram para a Praça da Alfândega. Geraldo levando seu toca-fitas ouvindo velhas gravações da Cor do Som e do 14-BIS. Os
outros "ripes" ficaram olhando para eles.

Cadê a licença? Perguntou o fiscal da Smic (Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio da Prefeitura Municipal de Porto Alegre). Não sabemos de nada, respondeu Geraldo. Eles eram pequenos empresários inexperientes e não conheciam toda a burocracia que uma pessoa tem que ultrapassar para poder conseguir começar a trabalhar, não só em Porto Alegre, mas em qualquer parte do Brasil.

O fiscal, que sempre anda com dois brigadianos, que é para não levar um pau dos camelôs, mandou apreender toda a mercadoria. Vão ter que ir lá no depósito retirar pagando uma multa e depois encaminhar um requerimento para começarem a trabalhar.

Geraldo estava arrasado. Seu sonho de poder reviver seus tempos áureos da ripemania e ainda tentar ganhar algum para sobreviver com isso tinha sido aniquilado. Papelada, burocracia, taxas, impostos. É
muito azar. Adriana chorava com as mãos no meio das pernas, usando seu vestido psicodélico feito especialmente para a ocasião. Eles eram uns dinossauros. Uns idiotas perdidos no tempo. Anacrônicos.

Pegaram o ônibus de volta para a casa de material que moravam em Viamão. Geraldo acendeu um incenso e, recitando mantras indianos, nu, implorou uma resposta aos céus para solucionar seus problemas e foi dormir. Adriana desabou na cama e roncou como uma bêbada, deitada de barriga para cima.

Raul Seixas vestindo um terno preto e tomando uma Fanta Uva de canudinho apareceu para Geraldo.

- Ei Raul, o que tu quer comigo?

- Rapaz, você tem que fazer o que tem fazer.

- E o que eu tenho que fazer?

- Invadir o depósito e pegar de volta suas mercadorias.

- Mas, mas, como é que eu faço isso? Eu vou ser preso.

- Não vai nada. Os guardas vão estar dormindo e você terá a chave. Mas agora eu tenho que ir.

- Peraí, Raul! Onde é que tá a chave?

- Você vai saber quando chegar a hora.

- E porque tu tá tomando Fanta Uva?

- Qualé a diferença, mermão? Eu já tô morto mesmo.

E Raul desapareceu como a imagem de uma Telefunken 78. E Adriana largou um peido. Bá! Como é que ela conseguia comer esse rango macrô, pensou Geraldo, um ripe que não dispensava uma carne de ovelha gorda, afinal ele era ripe mas tinha nascido no Alegrete. E essas coisas não tem mania que arranque do
couro. Só matando.

Geraldo se levantou vestiu seu macacão surrado e sua camiseta colorida pintada com uma escova de dentes e uma raquete de tênis velha, colocou suas sandálias, e ainda conseguiu pegar o último Viamão para Porto Alegre.

Onze da noite, centro de Porto Alegre, Geraldo atravessa pelas ruas escuras do centro de Porto Alegre, o zaire, a zona, os ladrões, traficantes, mendigos e os otários de sempre. Geraldo encontra o depósito da Smic. Os guardas estão dormindo e a chave está na porta. Como Raul tinha falado.

Entra lá e pega suas miçangas. Todas estavam lá, intactas. Mas, na hora de sair, enxerga uma luz em um canto do depósito. Ele deveria cair fora logo, mas a sua curiosidade era maior que a sua pressa e foi ver o que era aquela luz.

A luz era verde e aos poucos mudava para o azul e quando chegou mais perto enxergou uma pedra cheia de pontas, como aquelas do seriado Elo Perdido. Ele pegou a pedra na mão e tudo ficou escuro. Um torpor tomou conta de seu corpo e Geraldo despencou como uma bola de fliperama no meio da escuridão.

Adriana estava nua e tinha vinte anos menos. Estava sentada no colo de um velho narigudo. O velho enfiava seu nariz absurdamente grande no meio de suas tetas e furungava como um porco na bosta. Adriana ria como uma vadia de filme italiano. Geraldo estava amarrado numa mesa colocada de pé e foi
então que apareceu Paulo Coelho usando uma túnica amarela e falando em espanhol coisas que mais pareciam uma oração. Era uma ladainha que sempre terminava com a frase "muerte a menem". Um homem, que Geraldo enxergava somente as pernas cruzadas em um canto escuro, falou.

- Geraldo, onde estão as chaves?

- Que chaves?

- As chaves, imbecil! As chaves que o Raul te entregou.

- Eu deixei na porta. Eu deixei na porta! Respondeu, já berrando, Geraldo.

- Então vá buscá-las.

- Mas como, se eu estou amarrado aqui?

- Isso não é problema nosso. Respondeu o homem se levantando e deixando seu rosto aparecer. Era ele. O próprio. Ulisses Guimarães. Sorria como um decrépito de filme americano vagabundo de horror. Ele tinha asas brancas nas suas costas e fumava um cigarro azul com um cheiro insuportável de canela. Geraldo tossiu e de dentro de sua garganta saltou uma chave enorme de fechadura Dobermann. Paulo Coelho cerimoniosamente pegou a chave do chão e a entregou para Ulisses. Adriana estava de quatro e o velho narigudo chafurdava com seu nariz no rabo de porco que tinha crescido na bunda da moça. Ulisses pegou a chave e comeu.

- Pronto, Geraldo, pode voltar para sua vida.

E Geraldo viu tudo escurecer e acordou no meio-fio da Mauá com a buzinada de uma viatura da brigada.

- Levanta daí, maluco. Quê que tu tem, tá chapado, é?

Geraldo não falou nada. Nunca mais falou nada. Nunca mais voltou para casa. Nunca mais viu Adriana. Passou o resto de seus últimos quatro meses de vida vendendo lápis fabricado em Taiwan na esquina da Rua da Praia com a General Câmara. Morreu depois de cheirar um resto do que achou ser cocaína mas era
pó de lâmpada fluorescente. Os traficantes não respeitam mais ninguém mesmo.

Seu corpo foi usado como experiência nas aulas dos burguesinhos da Biociências. Até que um dia foi incinerado e suas cinzas enegreceram o céu de Porto Alegre numa tarde ensolarada de Julho. Então um trovão vez seu som presente no centro de Porto Alegre e do lado de uma árvore da Praça da Alfândega um aposentado morreu depois de enxergar um fantasma nu mijando sentado.

Geraldo respeitava sua mulher. Por isso nunca mijou de pé.
 
 
El Comanchero,
um solitário das montanhas do Novo Mexico.
crazyhorse@india.com
 
 

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