Olhos fechadérrimos
por Ariela Boaventura
 
 
Tá certo, tudo bem: a Warner cortou 65 segundos, né?

O povo americano deve ser o exemplo, o povo americano deve parecer o que há de bem no mundo. Sexo? Sim, mas sem suor ou pruridos viscerais, muito happy end e, claro, armas, que é no que escoam sua broxice existencial. Ninguém produz mais filme sobre guerra, ninguém tem tanto problema com armas
como o americano. Tá, eu não tenho nenhuma estatística aqui em mãos, é uma posição pessoal.

Jamais pensei em algum povo com asco. Talvez, desprezo. Uma gente que não lida bem com sexo deve ter algum problema sério. Será a religião protestante? Ou a religião mais forte, o capitalismo ISO? Vide os
serial-killers lá produzidos - se bem que Natural Born Killers me fez ir às lágrimas, tão belo -, e a já tradicional petulância em ser o humano-padrão do mundo.

A última obra de Stanley Kubrick, o americano que não suportou sua pátria, Eyes Wide Shut, foi tão bem bolada que nem a censura americana teve capacidade de trucidar. Os puritanos não poderiam ver as cenas de bacanal? Tem que deixar a cena assim, embaçada, para não chocar as famílias americanas? E o que meu vizinho vai pensar se eu disser que vi EWS e gostei? Não tem problema, rapêize: o Tio Kubrick pensou em tudo. Até na parte do corte, posso arriscar. Ele sabia que estava lidando com o maior poço de hipocrisia do mundo: a sua nação natal. Não foi à-toa que levou tanto tempo para concluir EWS. Não foi por nada que fez Tom Cruise e Nicole Kidman encenar mais de cem vezes o mesmo plano, copulando (americanos 'copulam', 'acasalam', e não trepam ou fodem).

Não foi pra fazer um filminho comum e de fácil digestão que Kubrick apelou para técnicas pouco ortodoxas de desinibição sexual. Tá tudo na Internet, até mesmo o final do filme e o tudo que se sabe. Talvez jamais um filme tenha sido tão divulgado de forma escusa como EWS, tão esperado e broxado a expectativa de tanta gente.

Quando da estréia nos Estados Unidos, a Folha de São Paulo dedicou duas páginas do caderno Ilustrada à crítica do filme. Só negativa, decepção. É difícil crer que o gênio de Laranja Mecânica possa ter produzido algo tão aquém.

Não ficou muito claro, porém, que estes críticos tenham de fato comparecido à estréia do filme. Na verdade, me pareceu que estavam escrevendo em cima de releases e de declarações vindas pela agência Estado.

Não duvido que um gênio seja imune a cagadas. Mas tenho fé na intenção humana e na arte, e por isso, prefiro crer que Kubrick fez exatamente uma brincadeira com a Warner, outra brincadeira com Tom e Nicole e mais outra grande peça de comédia para o público, em especial os americanos. Aliás, o filme foi feito para o americano. Pois imagine se cenas de sexo oniricamente bizarras iriam chocar o brasileiro, ou o europeu (com exceção dos ingleses - que por sinal também são protestantes)! Ele brincou com a Warner: tanto tempo, tanta expectativa e dinheiro para "isso"! A trabalheira que vai dar agora para a Warner conseguir pelo menos recuperar o investimento! Fora o vale que os executivos já devem estar a pagar para os distribuidores etc. Ele brincou com Tom e Nicole: escolheu justamente um casal ligado conforme diz a Igreja, mas, na realidade, gays. Ou seja, contra o padrão, contra a regra. E conseguiu fazer este casal encenar cenas de sexo de verdade, porém sem o mínimo tesão. Ficou sequinho, como americano gosta. E, por fim, ele deve ter esperneado de rir, até mesmo antes de morrer, quando imaginou a reação do seu povo, ao NÃO ver o que esperava, e sair do cinema sem entender bulhufas. Ah, sim, já ia esquecendo: o nome do filme: Eyes Wide Shut, intraduzível, mas que poderia ser algo como "olhos fechadíssimos". De quem são estes olhos, meu Deus!? Do diretor, agora lá debaixo da terra? De Tom Cruise, sonhando? De Nicole, aquela puta (sempre como adjetivo positivo, sou fã das putas, todo mundo sabe)?

São os olhos da cultura hipócrita americana, isso o que compreendo, nas entrelinhas do nome da obra. Obra que, arrisco, certamente, será objeto de estudo dos grandes iconoclastas. Umberto Eco se sentirá irresistivelmente seduzido a fazer mais uma tese de pós-doutorado debruçada sobre o filme; professores infernizarão os alunos de comunicação com leituras semióticas da obra; EWS será uma sigla secreta, irá inspirar nomes de bares, de drinks e por aí vai. E, ano que vem, quem sabe, a Warner lançará "Eyes Wide Shut: o making of".

Enfim.

Kubrick, pra mim, continua perfeito, irretocável. Mesmo com 65 segundos a menos.
 
 
Ariela Boaventura
mozarela@hotmail.com
 
 

NÃO 66