- Fugi da polícia, desapareci pelos esgotos por dias e dias, viajei de Paris a Giverny de bicicleta, não é longe, é verdade, mas o pé doía demais, ainda dói, foi difícil, visitei a casa de Monet, vi os jardins, a ponte e o laguinho, adormeci pelas ruas, provei as cinzas das calçadas nas manhãs muito frias, sempre me escondendo, entrei em surto, o calcanhar, digo: o calcanhar. Tenho câncer no calcanhar. Me ajuda.
Falava em tropeços, afobada, perdida, criminosa.
Conheci-a em Madri, roubou-me a carteira na rua e consegui alcançá-la.
Daí para eu me apaixonar por ela foi um instante, os olhos azuis
e maliciosos me
encantaram. Depois de alguns meses, me procurava de novo,
mas por outro motivo. Chamava-se Lea, nome rápido e feliz.
- Como sabe que é câncer? Evita o doutor... - eu disse, desconfiado.
- Dói-me o calcanhar como absurdo, entende? - encrespou-se. Ao falar em português, fazia muitas construções estranhas e se expressava com palavras imprecisas. - Não preciso de otários em avental branco para me dizer o que já sei. Aliás, odeio médicos. E não tenho medo do corte - voz doce e nasalada.
- Não falávamos em medo. Falávamos em cidades européias, Firenze, Paris, Amsterdam.
- We're in London - ela pronunciou a frase em um inglês britânico e convincente.
- A Europa é uma só. Nas aulas de latim havia um texto que falava sobre isso. Uma pastorela de Virgílio, acho.
- Olha aqui, não tenho tempo para suas pastorelas, suas éclogas, mas tenho dinheiro. Quanto você me cobra para curar o calcanhar?
- O que você me pede é um absurdo. Não sou médico, não vou conseguir curá-la. Quem mais você visitou em Paris?
- Só Monet. Estou desesperada. Não preciso de médico. Preciso amputar meu pé. Você me ajuda? Corta ele? - sua voz estava mesmo desesperada.
- Vai ficar assim, sem o pé, como um pirata?
- Um dia eu ponho uma prótese - era sarcástica, além de tudo.
- Não tenho instrumentos cirúrgicos adequados - tentei convencê-la.
- Sei que tem remédios suficientes para não infeccioná-lo. Me basta. Eu pago bem. Muito bem - disse, convicta.
- Como? Agora você tem dinheiro?
- Acha que roubo apenas vagabundos como você? Conheci um turista canadense em Paris, um homem muito rico. Matei-o, roubei-o, por isso não posso entrar em um hospital. Pago em dólares.
- E se não for câncer? Se for apenas uma prosaica dor no osso?
- É um câncer no calcâneo. Pode se espalhar. Se eu não cortar, perco a perna, morro. Quer me ver sem a perna?
Pra falar a verdade, não me agradava nem a idéia
de vê-la sem o pé. Baixei os olhos e fiquei admirando-o, o
esquerdo. Era ossudo, a pele lisa e clara. Ajoelhei-me e toquei-o. Ela
afastou minha cabeça com o
próprio pé, e eu aproveitei o movimento
para beijá-lo.
- Tudo bem, mas tenho uma exigência - eu comecei, recompondo-me.
- Já sei, wanna fuck me - ela disse, aborrecida.
- Eu não estava pensando nisso. Ainda não, pelo menos. Mas o que eu quero é algo ainda mais especial - arregalei bem os olhos, interessado.
- O que é? - ela parecia alheia ao meu interesse.
- É algo macabro.
- "Macabro"? O que quer dizer "macabro"?
- Tétrico, medonho, fúnebre. Sabe?
- Sei. Tétrico, sei. Afinal, qual a exigência? Você corta?
- Corto. Mas o pé fica comigo - eu disse, abrindo
um sorriso que eu agora sabia ser macabro.
Dante Sasso
Dante@cenex.com.br