A segunda não foi exatamente uma explicação, mas em compensação foi bem sucedida. O Hique Gomes (na época era com "S") e o Nico Nicolaiewsky me convidaram pra discutir um possível trabalho conjunto e eu cheguei na casa de um deles completamente inseguro, adorando "Tangos e Tragédias" mas ainda sem saber exatamente se eles teriam as mesmas idéias que eu sobre o brega, o popular, o erudito, a razão e a emoção, a quarta internacional e o meio-campo do Internacional. Resolvi apelar: antes de falar qualquer coisa, antes mesmo das apresentações formais, eu perguntei, sério, sem dar margem a que parecesse uma brincadeira qualquer: "Eduardo Dusek ou Raul Seixas?" Os dois se olharam por um instante, sem entender direito, mas em seguida me encararam e responderam, em uníssono: "Raul Seixas, sem dúvida!" Era, claro, o que eu queria ouvir. O trabalho não saiu, por outros motivos, mas eu ganhei dois irmãos.
Uma outra ocasião, resolvi mandar para uma
amiga venezuelana uma fita com algumas músicas de Raul Seixas, na
tentativa de apresentar pra ela, que era uma admiradora da música
brasileira, algo que ela sequer supunha que existia. Foi a terceira e última
vez que eu tentei explicar Raul Seixas. Espero que a Rosamaría não
se importe se eu transcrever aqui uma parte da carta que eu mandei pra
ela em 4 de janeiro de 1992. É que, daquela vez, a explicação
me convenceu.
Por que Raul Seixas? Como músico, ele é
inferior a Gilberto Gil ou Tom Jobim; como poeta, não se compara
a Chico Buarque ou Caetano Veloso; como cantor, não chega aos pés
de Milton Nascimento ou Elis Regina. Mas acontece que ninguém mais
foi tão completamente Raul Seixas: roqueiro, nordestino, irresponsável,
panfletário, místico, anarquista, demonólogo, iconoclasta.
No Brasil existe um conceito - BREGA - que define ao mesmo tempo as canções do Julio Iglesias e a decoração de interiores de quartos de empregada, os livros da Barbara Cartland e as reproduções em três dimensões da Santa Ceia de Leonardo - em resumo: o mau gosto popular, a parte inferior da indústria cultural. Na eterna batalha para conquistar o público, muitos músicos brasileiros, nas últimas décadas, têm tentado trabalhar em cima do brega para produzir ARTE. Mas, em geral, utilizam erroneamente conceitos brechtianos sobre distanciamento e mal colocam o pé na lama do brega. O resultado é um produto ambíguo, sem personalidade, que no máximo chega a ser KITSCH, ou seja: o brega transposto para um contexto culturalmente "aceitável". Raul Seixas é brega mesmo, e tira a beleza do próprio mau gosto popular (que pode estar no rock, no bolero, no baião, na balada nordestina), não de uma racionalização sobre o mau gosto popular. Raul Seixas é autenticamente tudo o que se pode dizer dele: conhecia muito pouco de música, não elaborava convenientemente suas letras, tinha voz limitada. E era verdadeiramente popular: vendia mais discos para operários e empregadas domésticas que para estudantes e profissionais liberais. A mim, pessoalmente, não interessa o Raul Seixas religioso ou o Raul Seixas politizado ou o Raul Seixas romântico-melodramático: a única coisa que me interessa em Raul Seixas é a mistura de tudo isso - e é essa mistura que explica tudo. Eu tenho em casa quase todos os discos dele, mais de 200 músicas. Estas 15 que estou te mandando na fita talvez não sejam as melhores, mas certamente são uma boa escolha para quem quer se iniciar em Raul Seixas. Pena que a qualidade da gravação não está muito boa, mas o problema é o meu gravador. AL CAPONE é um rockão bem dançável (pelo menos para mim que, como te falei, só consigo dançar Raul Seixas), em que ele mistura gângsters e cangaceiros com Jesus Cristo e Jimmi Hendrix. O narrador se diz um "astrólogo" que aparece para estes personagens e avisa que eles estão em perigo. Tarde demais. METAMORFOSE AMBULANTE eu já tinha escrito pra ti num guardanapo ou coisa parecida, naquele restaurante musical em Telluride. Espero que tenhas perdido. MOSCA NA SOPA é uma espécie de hino de quem quer incomodar a vida calma dos outros: musicalmente, é uma das primeiras fusões de rock com baião; politicamente, prenuncia um anarquismo militante. OURO DE TOLO mudou a minha vida. De verdade. Foi a primeira música dele que eu ouvi, em 1973 (aos 16 anos) - e foi aí que eu entendi por que eu me sentia "diferente" dos meus colegas. (Tipicamente adolescente, não é?) Depois disso, resolvi que eu nunca ficaria "sentado num apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar" - seja lá o que for isso. EU SOU EGOÍSTA é uma provocação interessante, em que ele desenvolve algumas de suas idéias anarquistas - com as quais eu nunca concordo, mas sempre acho fascinantes. TU ÉS O MDC DA MINHA VIDA é uma obra prima do brega assumido, em que todos nós somos acusados de bregas. É uma música que me provocava muito mal estar, no início. ROCK DO DIABO é um rockzinho bobo, mas muito forte. Eu e o Nelson Nadotti usamos essa música no nosso longa em super 8, DEU PRA TI ANOS 70 (1981), pra descrever uma época, ou melhor, um momento: 1975. PRELÚDIO não chega a ser um belo poema, mas pelo menos é uma boa frase. SOCIEDADE ALTERNATIVA é uma declaração de princípios (ou de falta de princípios) anarquista e anti-histórica que a minha mente dialética não consegue suportar, mas que faz meu corpo sacudir tanto quanto A MARSELHESA ou A INTERNACIONAL SOCIALISTA. LOTERIA DE BABILÔNIA é muito melhor como letra, uma idéia que ele simplificaria em outra música, TODO MUNDO EXPLICA (1978): "antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem que escrever o seu". GITA é um hino religioso, panteísta e bobo, mas eu acho lindo. Em julho de 1989, poucos dias antes de morrer, ele fez um show em Porto Alegre. Quando ele começou a cantar MALUCO BELEZA, desafinado, quase caindo, eu e meu irmão nos abraçamos e choramos. Meu irmão, então com 30 anos, dizia: "esse cara faz parte da minha cabeça". O DIA EM QUE A TERRA PAROU aponta a desobediência civil como única saída para fora das "instituições totais" de Michel Foucault. CANTO PARA MINHA MORTE é quase um tango do Piazzola, e a letra até hoje me impressiona muito. MAGIA DE AMOR é um belo soneto. E acabou-se a fita. |