DEMÔNIOS NO PARAÍSO?
de Jorge Furtado
"É possível amar o ser humano.
Basta não conhecê-lo muito bem". Charles Bukowski
Por milhares de anos os índios viveram em paz neste paraíso tropical do Atlântico Sul. Não conheciam a escrita, o metal ou a roda, mas inventaram o cigarro e fumavam de tudo. Não tinham escravos. Viviam da caça, da pesca, das frutas.
"Como todos os povos que atingiram um alto nível de civilização, eles não usavam trabalhar" (Murilo Mendes). Andavam nus pelas praias, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Eram, no dizer de Anchieta, "pecadores perfeitos". Depois da puberdade a mulher podia manter relações com quantos homens quisesse, a virgindade não tinha valor algum. Os homens que possuíam o maior número de mulheres eram respeitados como os mais valentes.
Dormiam todos juntos, mais de cem pessoas numa só maloca sem qualquer divisão, todos à vista um dos outros. "Quando um casal se dedica ao ato, deixa todos os vizinhos ouvirem. O marido se orgulhará do que está possuindo, ao que a mulher responderá com observações igualmente cruas. Ela rirá, discutirá e acrescentará outras obscenidades". Todos só conversavam "sujidades que cometem a cada hora".
É de se supor que os índios brasileiros tinham, sem querer ofender ou criar qualquer preconceito contra os nossos irmãos indígenas, um pênis médio. Ou pelo menos menores do que desejariam as índias. Só isto explica o hábito de fazer crescer o membro do parceiro com um dolorido processo: "costumam por nele o pêlo de um bicho tão peçonhento que lho faz logo inchar, com o que se lhe faz o seu cano tão disforme de grosso que os não podem as mulheres os esperar sem sofrer".
Não havia pecado da carne que não cometessem. "As velhas granjeavam os meninos ensinando-lhes o que não sabiam". Não discriminavam o homossexual, a quem chamavam, muito propriamente, de "tivira".
Viviam pois os tapuias neste paraíso terreal quando os invasores chegaram. Destruíram tudo que viram, numa guerra feroz que quase os dizimou. Ali começava uma história de genocídio que duraria 500 anos. A descrição feita pelo Marquês De Wavrin de um destes confrontos dá uma idéia do que uma civilização "mais avançada" é capaz de fazer:
"tendo capturado uma índia, um dos homens agarrou-a e, prendendo-lhe a cabeça entre as pernas, segurou-a pela cintura para imobilizá-la nesta posição, ela de joelhos, inclinada para a frente. Assim o chefe do grupo a violentou primeiro, seguido de todos os homens, que deviam ser uns duzentos. Cada dia este suplício se renovava, e isto depois de a mulher ter ido colher lenha para todas as fogueiras. Compreendendo que era inútil tentar resistir, no terceiro dia, assim que percebeu que iam agarrá-la, ela própria assumiu a postura, a qual se sujeitou todas as vezes que alguém manifestava o desejo de possuí-la. Mas, no quarto dia de sua captura, os homens a jogaram de costas no chão, abriram-lhe as pernas e depilaram-na totalmente, todo o corpo, apesar dos gritos e gemidos que a dor lhe arrancava".
Assim terminou o reinado de paz dos tapuias nas praias do nordeste brasileiro quando sobre eles caíram os ferozes invasores tupinambás, vindos do interior do continente. Depois de massacrar os tapuias, a quem julgavam bárbaros, e expulsá-los para o agreste, os tupinambás reinaram absolutos no litoral por 500 anos, até a chegada dos portugueses. Mas isso já é outra história.
Notas:
Referências aos hábitos sexuais dos indígenas brasileiros podem ser encontradas em muitas das crônicas e correspondências dos primeiros colonizadores. As citadas neste texto foram extraídas de Gabriel Soares de Souza ("Tratado Descritivo do Brasil", 1587), Américo Vespúcio (carta a Lorenzo di Medici) e José de Anchieta (Cartas, Obras Completas, vol.6). Dois ótimos estudos sobre o assunto são "Trópico dos Pecados", de Ronaldo Vainfas (Nova Fronteira, 1997) e "O Diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Mello e Souza (Companhia das Letras, 1989).
A descrição do rapto e estupro da índia não se refere, evidentemente, às batalhas travadas entre tupinambás e tapuias pelo domínio do litoral brasileiro, 500 anos antes da chegada dos portugueses. Trata-se de uma "índia civilizada da raça brasileira" raptada pelos guerreiros da tribo Guaharibo, conforme relato do Marquês de Wavrin, analisado no ensaio do etnólogo Pascal Dibie, "O Erotismo do Divino Marquês da Amazônia" (in "A Outra Margem do Ocidente", Companhia de Letras, 1999).
A palavras "tivira" para designar o homossexual masculino é tupinambá e não tapuia. Ronaldo Vainfas registra, além da grafia "tivira", a variante "tibira" (talvez já fruto da influência lusitana).