A Mina da Padaria
de Carolina Cimenti
Ela não era alta. Poderia ser linda, ter olhos brilhantes e olhares enigmáticos. Poderia usar só minissaias, pelúcias e cor-de-rosa. Poderia se valer do pouco tamanho e se parecer com essas mulheres mignons que os homens adoram fazer que dominam... Poderia usar o cabelo longo, loiro, unhas vermelhas e compridas, salto alto, fino e meias de seda... Poderia sorrir sempre, usar cílios postiços e virar uma eterna ninfeta. Sensual, infantil, provocante, ingênua, selvagem e inocente. Poderia dominar o mundo assim, a passos curtos, firmes e femininos. Poderia tudo assim, até ter aquele cara que passa as noites encostado na parede, não sorri, não cumprimenta, não olha. Bebe uma cerveja sozinho em silêncio e, só as vezes, sai dali de mão com uma menina linda, deslumbrante... e alta.
Não. Não importava. Naquela noite nada importava. Era como uma despedida de tudo que a prendia, de tudo que a impossibilitava de ser livre e independente. E era só o começo. Sexta-feira, como se põe esta sensação em palavras? Saiu dez minutos mais cedo do trabalho, arrumou a mala, pegou um vinho e chamou o táxi. A essas alturas não estava mais sozinha, e estavam atrasados. O táxi correu. Não pararam de falar um único minuto no caminho até a rodoviária. Gritavam quase. Falavam sorrindo, e mesmo não se olhando, sabiam que era apenas o começo e nada poderia ser mais promissor. Sinal fechado, pedestre, engarrafamento. Que horas são? Risos. Já tá na hora? Abre o sinal. Vento. Tempo. Chegaram. Ele correu na frente, e ela foi quase não se agüentando com a mala atrás. Ele largou o jornal, ela riu e não pode parar. Atravessaram o prédio de um lado ao outro, ela sempre atrás, as vezes sozinha. O Ônibus já estava dando ré. Ele bateu na porta. Parou. Ela chegou. Entraram. Sentaram. Riram.
Há tempos não ficavam tão próximos, e os dois sabiam que era bom e era o máximo. Dali ninguém passaria, ninguém queria passar. Eram irmãos. Talvez mais até do que de sangue, haviam se escolhido, estavam ali para celebrar o que a vida havia feito deles. Foram próximos, ficaram distantes, e agora, depois de tudo, estavam ali, de novo, juntos, rindo. Abriram o vinho e com ele tudo que tinham dentro de si. Falaram, falaram, riram, ficaram em silêncio, fizeram promessas que não serão cumpridas e foram várias vezes ao banheiro. Um por vez, claro. Enfim, chegaram.
Não tinha longos cabelos loiros, unhas vermelhas e compridas e nem uma minissaia cor-de-rosa, mas o mundo era dela. E era frio. Quase como a neve. Subiu pela primeira vez as escadas que invejou por tanto tempo. Subiu mais e sentou no escuro, em algum lugar que apareceu. O filme era sobre morte, mas era uma comédia. Muita gente em volta, muitos cochichos, telefone celular. E o filme era curto, e era bom. Não dizia nada, mas quem se importava? Quem tinha mesmo o que dizer? Créditos: vamos embora?
Vamos. Entrou na padaria, olhou as pessoas, sorriu. Comprou um doce e, pela primeira vez na vida, esqueceu o medo. Tinha que fazer, simplesmente. Prometera um dia, na praia, para as estrelas, que seria feito. Era hora. Se olhou no espelho, gostou do que viu e fechou os olhos. Da mão para a boca, da boca para a fala, da fala para o canto, do canto para o riso, do riso para a loucura. O céu é o limite, e o cassino é o caminho.
Calor, sede, tudo normal. É assim mesmo? Eu tô normal. Como é que tu tá? Ainda bem que eu não mudei de roupa. Ia morrer de calor nesse lugar. E o sapato? Aquela sandália ia acabar com a minha noite. Ainda bem. Tudo normal, tudo normal!!! Qual é? É assim mesmo? Então é isso? É isso assim? Assim? E deu? Circulava. Fazia o que mais gostava em uma situação como aquela. E nada... nada... Tudo normal. Tudo igual. E tu? Pois é... Nada... Só um riso. Dois risos. Um riso solto. Um riso bom. Como é bom rir. Queria rir. Não podia mais parar de rir. E se depois não risse mais? Não, melhor continuar rindo. E ria mais. Ria forte. Ria de se matar de rir. Ria descontroladamente. Pe - gou. pé - gol. pé, chão, carpete, verde, grama, gramado, filmes, gentes, noite, luz, som, som som som, testando, som, som...
Ela era livre naquela noite. Livre como poucas vezes havia se sentido. Livre como naquela noite na Ferrugem havia sido. Livre como quando entrou no quarto de sua mãe e sentou no chão chorando, decidida a ir embora, e ficou. Livre como um dia foi em um trem em um lugar que não sabia dizer o nome. Livre como não se lembrava mais de ter sido. Livre. Perigosamente livre de todas as coisas que pensava. Livre de tudo o que sabia e queria esquecer. Livre de si. Livre de mim. Livre e burra. E rindo. Enfim, nada é perfeito.