"Pobre tem mais é que se fuder"
de Marcelo Benvenutti
Fazer o cabelo às duas horas da tarde em um dia de semana na Vinte e Quatro de Outubro não era um evento costumeiro na vida de Ana. Mas é que aquele dia era especial.
- Ei, Ana, como é que você quer seus cabelos?
- Ah, pode cortar bastante. Deixa ele, como é que se diz, assim, por aqui ó.
- Chanel?
- Isso, chanel.
- Mas esses teus cabelos castanhos, assim, longos e crespos, estão muito bem prá ti.
- Eu sei, mas eu quero me preparar bem.
- Preparar para quê?
- Para tirar a foto da minha carteira de trabalho. Sabe, eu vou ser admitida na editora.
- Na editora! Poxa, que sorte, ein?
- Sorte nada. Eu dei muito duro para conseguir a vaga! Meu primeiro trabalho vai ser amanhã. O lançamento em Porto Alegre de um de livro dos grandões aí. Bestisseler e tudo.
- E aí?
- Como, e aí, Clô? Grande evento, tá sabendo. Com direito a reportagem no Jornal do Almoço e o escambau!
- Será que o Lasier Martins vai tá lá?
- Deixa de ser fresca guria. Vão mandar um reporterzinho de merda qualquer. Talvez uma das garotas do tempo.
- Aquelas com cabelos enormes e lisos?
- É, essas mesmo.
- Eu adoro aqueles cabelos enormes e lisos.
- Deixa de ser boba, só porque teus cabelos são crespos. Um pezinho na África não faz mal a ninguém.
- Não faz mal mesmo.
- E o que tu quer com Lasier? O cara é casado e tudo.
- E daí? Casado não tá morto. E cavalo amarrado também pasta.
- É! E égua solta leva coice. Não me inventa, Clô. Vai arranjar um homem sem problemas. Vê se ti cria!
- Tá. Tá bom?
- Tá. Isso mesmo. Onde é que tem um fotógrafo aqui por perto.
- Desce umas duas quadras que tu encontra.
- Toma, valeu o dinheiro. Beijinhos para Márcia.
- Pra ti também, tchau.
- Tchau.
Ana foi até o fotógrafo com seu melhor pretinho básico usado por dez entre dez patis e pseudopatis. Belas fotos, pediu ela. Para a carteira de trabalho. Minha primeira carteira de trabalho. Ficam prontas daqui umas duas horas? Tô com pressa. Tá, tudo bem. Vou até uma livraria aqui perto. Tenho que conhecer um pouco do escritor com quem vou trabalhar amanhã.
Um livro do Altair. Esse aí, com a capa azul. Deixo eu ver. Era uma dessas livrarias grandes, que tem cadeiras para os leitores sem dinheiro fazerem orelhas nos livros que não vão comprar.
Seja você mesmo. Você e só você podem fazer algo para melhorar sua vida.
Você é bom. Você é bom demais. No mundo nada se perde, tudo se ganha.
Todos nós podemos sair ganhando. Eram as palavras de apoio e auto-ajuda do livro de Altair. Que palavras lindas, pensou Ana. Palavras para serem apreendidas pelo seu cérebro e usadas todos os dias. Palavras para livrarem-na da vida solitária. Sua e de sua mãe na casa mista em que moravam na Nova Gleba. Para tirá-las daquele atraso de vida. Palavras para fazerem com que ela encontrasse o príncipe encantado que a levasse para o reino da felicidade e do amanhã sem fim. E quem disse que o príncipe encantado não estava ali na sua frente. Um rapaz alto de cabelos lisos e loiros. Um brédipidi de calças de brim apertadas e camiseta branca sem estampas. E estava olhando para ela. E ela correspondendo. Ela sabia que não era de se jogar fora com suas pernas grandes e seu pescoço apetitoso. Comestível.
- Ei, você gosta mesmo do Altair?
- Porquê?
- Porque está aí. Meia hora lendo este livro e só virou duas páginas.
- Ah, é mesmo. É que eu fico pensando muito em cada frase que leio. Cada
uma delas têm um sentido único. Indissolúvel. Falou Ana, se esforçando para ser a mais intelectual possível.
- Ah, desculpe, meu nome Roberto. Quem sabe a gente pode conversar mais um pouco sobre isto na sorveteria do outro lado da rua.
Roberto era seu príncipe. Tinha um Golf importado vermelho, um celular, tevê a cabo e uma casa em Torres. Que Deus. E contou tudo isso sem querer bancar o bonzão nem nada. Foi Ana quem provocou. Hoje ele estava ocupado. Plantão no Hospital. Estava cursando o último ano de Medicina.
Quem sabe amanhã, vamos ao cinema. Ana fez muxoxo, disse que tinha que estudar para uma prova, papo, pois ela tinha terminado o segundo grau e não tinha dinheiro para um cursinho e tentar passar na urgues. No máximo uma São Judas ou uma Ulbra. E grana pra isso ela não tinha. Nem sua mãe.
No fim, combinaram. Ana passou o telefone do serviço como se fosse o da sua casa. Ah, meu Deus! Saiu de lá flutuando nos seus saltos duplos e grossos, que pobre deslumbrado sempre tem dinheiro para comprar bobagens. Pegou as fotos e comprou a carteira de trabalho na tabacaria. Amanhã, tinha que acordar cedo, ir no Ministério encaminhar a carteira e começar a trabalhar. Depois ela assinava o contrato de experiência. Recepcionista da editora.
Continuou flutuando até chegar na Farrapos. Nova Gleba, aqui vamos nós. Três rapazes, dois negros e um branco, subiram na altura do Lindóia. Deixaram o ônibus entrar no bairro.
- Vamo se acalmá. Vamo se acalmá.
- É! Se todo mundo ficá quieto nada vai acontecê.
Ainda estavam no ônibus umas dez pessoas, incluindo Ana. Os ladrões roubaram o cobrador, pularam a catraca, porque eles eram chinelões de responsa, e começaram a achacar o resto dos passageiros. Ana entregou sua bolsa, com suas fotos maravilhosas e sua carteira novinha em folha. O dinheiro que ela levava só dava pra outra passagem.
- Essa aqui não tem nada.
- Escuta aqui, puta, cadê a grana?
Nisso, um civil armado, perto do cobrador, puxou seus trintaeoito e atolou. O branco se abaixou, Os negros de boné saltaram porta afora. Ana sentiu um calor na nuca. Acho que vou desmaiar. A arma do civil não tinha registro. Dois ladrões deram no pé, o branco foi parar no HPS com um tiro que ele mesmo acertou no próprio joelho. Ana teve um enterro sem precedentes no bairro. Com direito a reportagem do Jornal do Almoço, comentário do Lasier Martins, indignado, coluna do Paulo Sant'Ana, com comentários de leitores estupefatos, e as mão trêmulas e incrédulas de Roberto, o donruan de novela das seis da Globo, examinando o corpo de Ana no Plantão. Sem vida. Seus seios, suas coxas, a bunda. Que bunda! E ele estava sozinho no plantão. E o corpo ainda estava quente. E Roberto estava excitado com o pó que tinha cheirado, comprado de um traficante da Goethe. Ana, me perdoa, mas pra ti não faz mais diferença nenhuma. E Roberto enrabou o cadáver de Ana. Uma boa e velha enrabada de filme pornô. Merecia até uma frase em um novo livro de Altair, o guru da classe média deslumbrada: Nem morrendo pobre deixa de se fuder. Ou:Pobre se fode até depois de morto. Garanto que venderia bastante.