Quatro da Tarde
de Bela Figueiredo
Quatro da tarde, por aí. Um pouco de luz entra pela pequena janela. Apenas uma camisa branca sobre a pele crua. Joana está descabelada e sentada no chão do quarto. Olha para os pés e tenta qualquer idéia que lhe remeta ao futuro. Nem no fundo da xícara de café está a previsão. Tudo é intangível. Aperta um cigarro no cinzeiro e pensa no agora, na crueza de estar largada, solta. Livre.
No momento em deveria viver o luto da partida do primeiro homem, uns olhos de ameixa lhe perseguem com gana. Ela está sozinha admirando seu museu de emoções. São fotografias, bilhetes, um quadro na parede - o lugar-comum construído ao lado de Carlos -. Enxerga todo o passado e para distrair idéias nada melhor que uma balada brega e argentina. É tão fácil abstrair...
Do outro lado da cidade, entre palavras e adoração, Renato pode estar tentando telepatia. Ou dormindo pesado, caminhando nu pela casa ou dançando em frente ao espelho. Talvez reze a Deus ou veja um filme de quinta na TV. Ou nada disso. Ele mal sabe que toca a essência dela com uns dedos de unhas bem feitas e a tristeza dos que estão sem norte.
Joana não está só - há Renato com seus olhos-ameixa, romanceando a guerra. Ele luta contra quem? Que armas utiliza? Joana já lhe perguntou. Ele não disse nada; nem precisava mesmo - basta para ela saber que Renato existe e que Carlos foi -. Tinha de ir um dia mesmo. E ela não vestiu o hábito, conforme prometido. Estava alva, transparente. Não seria viúva de Carlos.
Joana trocou o doce do mel de Carlos por um rosto talhado com singeleza que, depois do pescoço bem feito, tem um coração necessitando cuidado e palavras ditas bem devagarinho para amar. Joana é quem parece partir para lugar desconhecido - as roupas sobre a cama, alguns objetos no aparador e os pensamentos dizendo absolutamente nada -. Não vai fazer as malas nem tomar sol ao lado de Carlos outra vez. Não quer as ondas dele, nem a perfeição estética. Está velha, mesmo tendo a beleza dos que morrem jovens. E para que serve o belo de fora senão para admirar? Joana busca, incansável, a essência, o avesso.
Para começar uma nova empreitada é preciso morrer, sabia. Prantear aquele amor lindo que viveu e que hoje partiu. A beleza... tão caduca, prostituta. Idiota. E não sai nenhuma lágrima. Há amores natimortos e o de Joana e Carlos - mesmo que celebrado entre coxas, tremores de frio e línguas passeando pelo dorso -, esvaiu. Um amor que despontou póstumo.
Pílulas de reflexão 'one more time'. Em doses homeopáticas, seu corpo não apresenta qualquer sinal de pânico. Imagens lhe remetem ao saguão do aeroporto Salgado Filho. Vôo meia meia alguma coisa rumo à terra natal. Carlos talvez esperasse que Joana fosse despedir-se. Não foi. A noite, ontem, com Renato, lhe fez sublimar a partida do outro. Agora, Carlos era o outro. E Renato, o um.
Joana questionava de que forma se apresentaria o amor depois de Carlos. Seria sólido de mãos fortes? Rústico, imperativo? Esperava que sim, aliás, como esperava... Talvez fosse mais prudente agir. Até então, todos gasosos, amorfos. E tem de ser úmido, parrudo, sabor ocre, aroma de nicotina. Veio com o nome de Renato e uma fita grudada na testa aonde estava escrito:
"Cuidado. Frágil".
Joana deitou-se no chão. Esparramou por ali alguma delícia. De barriga para baixo, o queixo no parquê. Examinou, calmamente, o mosaico do chão. A vista parecia embaralhada. Então, arrastou-se até o bidê e pegou um bloco. A folha continuou virgem - não conseguiria desenhar os cabelos pretos de Renato, a aura, a envergadura. Ele não é desses hipócritas fáceis de descrever. Puxava firme, segurava, o Renato. Algumas imagens chapadas do buraco que se meteram ontem fizeram com que Joana suspirasse. O moço verde-abacate, sem farda nem arma. Um olho de raio-X, que arranca pedaços. Ou de ameixa, sei lá!, torneado por sobrancelhas duras, espessas. Como o olhar dele lhe fascinava...
Largou o bloco e examinou a ferida no joelho. Logo criaria uma casquinha que, em seguida, cairia e tudo bem. Ficaria alguma marca? Talvez. E outros tombos viriam e os machucados também e depois a casquinha, que cairia, e outra e outra e outra vez até que fosse inventado um novo remédio.
Cutucou a feridinha com o indicador. Mercúrio para colorir, disfarçar. Piscou de medo e acabou derramando o líquido no chão quando ouviu as palmas lá fora. E alguém chamava por ela. Foi até o portão e Renato - o poeta transformador - estava lá, armando a estratégia. Podia entrar sim, o lenhador e seus tocos de delírio. Trouxe a lenha, Renato, e bateu palmas porque não sabia assoviar, explicou à Joana. A camisa branca atirou-se no chão. Celebraram, Renato e Joana, o amor em memória de Carlos. Queimaram tudo, sete da noite, quando o sino da catedral lhes chamava para o ofício sacro-santo.