Saudade das minhas mortes
de Carlos Gerbase
Quando eu era pequeno, tinha pesadelos extremamente sofisticados, muitas vezes originados de filmes que tinha visto na TV. Depois de ver "A guerra dos mundos", com discos voadores destruindo Washington, fui dormir e meu inconsciente funcionou como um video-tape, repetindo toda a história, só que comigo no papel principal e Porto Alegre como cenário. Provavelmente não tive uma boa atuação. Também lembro de pesadelos com bruxas e monstros, de quem eu corria pelas ruas do meu bairro, apavorado.
Outro clássico: eu estava dormindo (no sonho), acordei, levantei e quando olhei para a cama, vi uma caveira sangrenta, flutuando na altura do travesseiro e olhando para mim. Mais um: eu estava num barco que navegava por um rio, em cujas margens um bando de índios lançavam flechas em minha direção. Eu consegui escapar de uma, de outra, mas a terceira me atingiu de raspão. Então alguém no barco me disse que a flecha era envenenada. Imediatamente senti o veneno tomando conta do meu corpo e chegando ao coração. Fiquei sem ar e morri. Meu "espírito" (ou seja lá o que for), saiu do corpo e foi elevando-se. Acabei "vendo" meu corpo morto, sobre o barco, que continuava singrando o tal rio.
Todos esses pesadelos acabavam sempre do mesmo jeito: com calor intenso e um formigamento nos membros, seguido de um despertar nem um pouco agradável, com o corpo suado e uma sensação de desamparo. Até que, um dia, de alguma maneira, meu inconsciente passou a perceber que esses sonhos eram aterrorizantes, mas tinham roteiros "certinhos" demais e, portanto, não podiam ser reais. E, a partir desse momento, quando os pesadelos aproximavam-se do clímax, alguma coisa me dizia: "esse negócio não passa de um pesadelo", e eu acordava, mais ou menos tranqüilo.
Talvez esse fato tenha marcado a passagem meramente fisiológica da minha infância para a adolescência, mas também lembro, que mais ou menos por aí, aprendi a ver filmes mais legais, que tivessem garotas bonitas em vez de caveiras sangrentas. Meus pesadelos ficaram bem mais leves, (não lembro de nenhum que se compare aos que descrevi aí em cima), não morri mais, e até tive alguns sonhos bem legais, incluindo capacidade de voar e boas fantasias eróticas.
Hoje eu tenho 40 anos e continuo sonhando, mas nada de realmente espetacular. Na noite passada, sonhei que estava num avião. Depois de um estrondo, o avião começou a cair. Olhei pela janelinha e vi que a situação era desesperadora. Eu pensei: vou morrer. Mas essa constatação não foi desesperada; pelo contrário, fiquei esperando pelo fim como quem espera um ônibus. E então acordei. Nada de calor, de suor, nada de formigamento. Virei de lado e continuei dormindo.
E agora penso: será que isso é bom? Sentir a morte no inconsciente e não reagir violentamente é sinal de quê? Não gosto disso. Acho que estou com saudade das bruxas, dos discos voadores, das flechas envenenadas. Acho que tenho saudade daquelas mortes rituais, dramáticas, que me faziam sentir a vida com uma intensidade que meu inconsciente sepultou faz tempo, num lugar escuro e inacessível da minha infância.