VERMELHOpor Dante Sasso
Encontrei novamente essa menina apenas ontem, mas foi o suficiente para que meu nervosismo voltasse com tamanha intensidade: enfiei a mão no bolso a fim de alcançar o lenço e poder livrar-me do suor do rosto provocado pela sua presença rubra e notável em um lugar onde eu jamais esperaria, e justamente nesse momento ela me descobriu e mostrou um sorriso sincero de dentes perfeitos, o que me deixou ainda mais inquieto: o lenço estava todo amontoado em um canto inacessível do bolso, e minha mão afobada só fazia-o amassar-se ainda mais e dificultar o meu propósito; nesse instante ela começou a caminhar em minha direção, e os passos que ela estendia até onde eu estava eram milimetricamente mensurados tanto pelos meus olhos aflitos quanto pelos seus, azuis e amarelos - na verdade, um halo amarelado que rodeava a menina do olho azul e que eu só descobri algum tempo após observá-la ao sol, um tempo que me pareceu muito longo e que após tanto pensar me foi dado a entender, embora soe ambiguamente óbvio e intranqüilo: a impressão do tempo é sempre muito maior quando o momento é particularmente fantástico - e durante esse momento de reflexão o tempo havia passado devagar, como a abalar minha angústia e confirmar minha teoria, o que me deixou ainda mais desorientado à medida em que ela avançava através da pista de dança, o vestido curto fazendo-me adivinhar as poucas vezes em que toquei suas pernas e abracei seu corpo; ela então esbarrou em alguém e eu finalmente consegui alcançar o lenço, e meu primeiro pensamento foi puxá-lo com força e raiva do bolso, amaldiçoando sua capacidade de ocultar-se em um espaço ínfimo e me deixar ainda mais nervoso exatamente no momento em que a reencontrava, mas ela conseguiu livrar-se do rapaz bêbado e insistente que a segurava pelo braço e continuou a vir em minha direção, deixando-me paralisado ao perceber naquele instante que o lenço prendera-se nas chaves - malditas chaves - que eu guardara no mesmo bolso; então eu pensei no que poderia dizer, e o que mais, já que agora retirar todo o lenço era apenas uma questão de concentração e, por que não admitir, de um tanto de sorte, o que mais eu poderia dizer senão "puxa, como está quente aqui dentro", e passar suavemente o lenço pela testa molhada e expressar alguma preocupação com a temperatura ambiente quando na verdade o que me preocupava era, em ordem exata: retirar o lenço do bolso para tornar minha aparência mais agradável e iniciar uma conversa com ela, ainda sem a mesma intimidade que nunca tivemos, mas já com a intenção de começar um relacionamento constante com aquela que poderia realizar todas as minhas fantasias: uma trança longa de cabelos afogueados escorrendo volumosa por entre os seios firmes e bonitos, uma nesga de carne muito branca aparecendo sob os fios corados como se ela fosse toda um tesouro, e eu sabia: era um tesouro, ou era muito mais do que um tesouro, era o mais lindo crepúsculo que eu pude até hoje vislumbrar; e então a música acabou, ela agora se encontrava a poucos metros do meu corpo, eu na beira do precipício, as chaves insistindo em enroscar-se no lenço, eu forçando sua retirada, sentindo um rasgo no tecido, o pano já muito firme em minha mão dentro do bolso e a voz dela saindo de sua boca também rubra mas ainda não chegando aos meus ouvidos: seria um "oi", talvez, ou um "como você está bonito", a penumbra ocultava parcialmente seu rosto mas eu sabia ser ainda o mesmo rosto claro e suave, apenas não discernia o movimento de sua boca, mas dificilmente ela me diria isso, com muito esforço consegui algum toque mais apertado de seus braços cobertos por uma penugem cor de rubi e de papoula, uma cor forte que me deliciava ao imaginar quantos daqueles pêlos ruivos existiriam em seu corpo, por entre as pernas e em sua nuca, e o quanto eles me fariam felizes: o lenço saiu limpo e fácil do bolso, sem as chaves, sem rasgo algum, e eu finalmente ouvi sua voz forte e rouca de paixão para mim dilacerada revelar o quanto meu lenço vermelho era bonito e o quanto ele deveria ter o meu cheiro e o meu sabor enquanto eu secava o suor do rosto e dizia: "puxa, como está quente aqui dentro".
Dante Sasso
<Dante@cenex.com.br>