por Dioclécio Luz
jornalista, escritor, plantador de macaxeira em Brasília
De cabo a rabo é tudo igual. Já se falou do pensamento único da imprensa brasileira. E de como isto é urdido visando a manutenção do que está aí. Mudar sem mudar - é a lei da gravidade que assola as redações da grande imprensa brasileira. A segunda Lei de Newton prescrita a esta imprensa estabelece que, antes de tudo, vale a parceria com as elites.
Bem, mas sobre isto Bernardo Kucinski já escreveu (e muito bem), em "A síndrome da antena parabólica" (ed. Fundação Perseu Abramo). Em tempo: a imprensa escrita só conhece os livros da Cia. das Letras e da Record - fora disso não existe vida. A pergunta é: existe vida inteligente nas redações dos cadernos de Cultura?
Você abre o Segundo Caderno, assim, como quem não quer nada e querendo, absolutamente livre de anúncio de prisão de ventre, tranquilão, e relaxado, e então é pego de surpresa. No latifúndio da arte e da cultura vale tudo - um dia está ocupado pelo mais novo livro (do baú) de Fernando Pessoa no outro comenta o novo disco de Bostãozinho e Bostozó, uma dupla breganeja de sucesso. Você pensa: tudo bem, vale como análise de comportamento... Lá dentro tem os colunistas sociais - e você pensa: tudo bem, vale como comportamento dos ricos... Na Folha de São Paulo tem até artigo semanal de Arnaldo Jabor - e você pensa: tudo bem, é cronista da TV Globo...
Agora, olhando bem, você descobre que foi enganado. O caderno de Cultura é um caderno de comportamento - onde se inclui de moda a modismos, muita bestagem e pouca luz . Os textos são retos, quadradinhos, e a diagramação parece propaganda de Maizena. Pegue os grandes jornais - Folha e Estadão, O Globo e JB, Correio Braziliense, Estado de Minas, Zero hora,.. - verá que não há o que se ver. Nenhum deles ousa, nenhum se arrisca, um poderia ser o outro que não diferencia. A forma - salvo exceções - repete a linguagem da TV: curto e grosso, cartesiano.
O texto, dizia, é um reclame de Biotônico Fontoura adaptado aos anos 99. Isto é, nada de novo a não ser a fartura numerológica. Jornalista bom, hoje em dia, é aquele que não consegue escrever uma linha sem citar números. E, principalmente, números da economia - deusa-mãe da classe jornalística nos dias de hoje. Quando um filme entra em cartaz, a primeira preocupação do repórter é informar aos colonizados instalados abaixo da linha do Equador que lá na matriz ele já rendeu tantos quilhões de dólares. Informa também, porque isto é importante, que o filme custou uns patrilhões de dólares. Informa ainda que ele teve 37 locações no deserto e mais 42 em Los Angeles e que o ator principal vai faturar 13,85% da bilheteria e que, muito importante, a atriz oliudiana ganhou 3,65% da bilheteria e mais alguns quitilhões de dólares somente para mostrar o bico do seio. Ah, bom... Agora, o filme presta? O filme tem alguma estética? É arte? O repórter, que antes cobria Polícia, infelizmente não sabe dizer, porque, afinal, ele não tem opinião, é só um repórter. E repórteres, nessa visão bruduga de profissionalismo, acha que não tem que achar nada. É um pau mandado, em outras palavras. Mandam, ele obedece.
Eis dois exemplos. Dois filmes. O primeiro, "Star wars". A indústria holliudiana mandou para cá a ordem (com dólares): falem bem deste filme. E todo mundo saiu atrás. A Folha de São Paulo, no seu Caderno "Mais!", onde semanalmente perfilam pensadores, cientistas, a inteligentsia, abriu as pernas para o filme - cinco ou seis páginas! Nunca um filme foi tão analisado como este. E eu pensei: deve ser arte... E não era. Foi somente mais um filme recheado de efeitos especiais. Um filme medíocre. Mas consegui saber todos os números: quantos atores e atrizes, efeitos especiais, locais de filmagens... descobri até - oh Glória de país colonizado - que havia uma brasileira no elenco. Ela entra muda e sai muda, faz uma pontinha no meio de 2 milhões de figurantes, mas, como o repórter observa, num box, isto é muito importante. Veja ficou igual a Caras, igual a Istoé, igual a Contigo. A manchete era a mesma: o filme do século.
O segundo filme foi "De olhos bem fechados" de Stanley Kubrick, que recebeu os mesmos cânticos de louvação. O filme é mal realizado, tem um roteiro sem substância e, principalmente, é mantido por uma dupla de atores medíocres - o tempo inteiro Tom Cruise e Nicole Kidman representam a si próprios. Mas chegou com campanhas de publicidade tornadas matérias jornalísticas. Desde a morte de Kubrick que os negociantes da área se jogaram no negócio: vamos vender este filme. E foi notícia o corte de segundos no filme original para agradar a hipócrita sociedade americana. E os rapazes daqui, defensores da liberdade de criação, empurraram artigos e artigos contra esta medida americana, porque afinal era uma obra de arte e não podia ser tocada, e bla-bla-blá... Esgotado este veio, a indústria do cinema empurrou o filme destacando cenas de amor tórridas do casal. E o diabo é que o filme não tem nem isso. Propaganda enganosa. A imprensa foi burra ou foi comprada? Acho que uma parte foi burra e a outra foi comprada. O curioso é como um produto como este é empurrado goela abaixo e alguns engolem e até se arvoram a fazer análises psicológicas do filme, tentando descobrir o que Kubrick quis dizer. A estes um lembrete: análise psicológica se faz de tudo. Um filme de Disney se permite versões psicológicas maiores que este filme menor de Kubrick. E, afinal, dizer que o diretor é um gênio - coisa da indústria - é um exagero, um grande exagero...
Aliás, essa história de "cenas tórridas de sexo" foi também o chamariz adotado para divulgar "Um copo de cólera" - um filmezinho ruim, onde o ator principal, marido da boa atriz Júlia Lemmertz, não sabe o que faz com os pés, as mãos, não sabe caminhar, não sabe falar, não sabe o mínimo de interpretação. As cenas de sexo no filme não estimulam nem pau de tarado - se me permitem grosseria. Outra propaganda enganosa.
Tudo isso descamba no Oscar. Claro, o caderno de Cultura não diferencia o que é arte do que é negócio. Portanto, já festeja a indicação do medíocre "Orfeu" como representante brasileiro no medíocre Oscar. Não sei o que é pior, participar de um torneio medíocre como este ou enviar um filme medíocre como "Orfeu". A imprensa escrita sempre me pareceu mais inteligente que a televisão. Talvez por isso a gente se espante com este desfile de inutilidades nos cadernos de Cultura. A televisão chegou ao máximo de sua capacidade criativa: mesmo mantida e administrada por grandes cabeças, consegue ser o veículo de comunicação mais medíocre em atividade no planeta. Nem vale a pena gastar linhas descrevendo seu baixo nível.
Para finalizar, mais um olhar sobre a linguagem. Desta vez sobre a presença do americanês. A Veja tem um caderno "Kids"; a Folha é "Teen",... Notou como os repórteres, coitados, não conseguem mais escrever sem utilizar termos em americanês. Um dia desses a Folha exagerou. Para anunciar o surgimento de um exímio guitarrista escreveu algo assim: "surge o new best sing da guitar". É ridículo, mas estava lá. Esse tipo de coisa é até admissível no colunismo social, afinal fazem um jornalismo descartável (fast-food, como eles diriam), e tentam seduzir por um vocabulário exótico, brilhoso, escandaloso (kitsch, como diriam), mas um repórter normal utilizar isto é sinal de burrice. Será que o jornalista não tem nenhum conhecimento do que é indústria cultural, colonização, cultura? Pelo visto, não.
Diante dessas notícias só nos resta aguardar o fim do jornalismo de Cultura e o surgimento de um caderno intitulado algo como "Supermercado de entretenimento", ou somente "entretenimento", ou ainda, o que parece mais a caráter "Entertenement today" (não é assim que se escreve). Antes que isso ocorra eu desligo os jornais.
Dioclécio Luz
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