Por Gustavo Fernandes
I - OS COMENTARISTAS
Todas as pessoas que acompanham o futebol, bem como as que assistem qualquer esporte, têm uma opinião formada sobre o tema, mesmo que não entendam nada do que estão presenciando. Os mais velhos fazem comparações com outras épocas "românticas", como o palmeirense apaixonado que teria erguido um altar para Ademir da Guia, no tempo em que seu time amargava os famosos 17 anos de fila. O socialista enrustido (ou assumido) lembrará, incessantemente, da época em que os jogadores atuavam por puro "amor à camisa", talvez se esquecendo que, em nome deste fervor inconseqüente, muitos deles terminaram a vida na mais completa miséria, pois nem só de gol vive o homem. Há aqueles que se julgam mais frios e melhores observadores que qualquer um e desafiam os limites da imaginação humana, bolando esquemas mirabolantes, descobrindo gênios improváveis numa simples pelada na várzea, e por aí vai...
Pois bem, desde os primórdios das transmissões esportivas, algum indivíduo de identidade ignorada pelo tempo teve a brilhante idéia de elevar um segmento destes torcedores à categoria de "comentarista". Inicialmente, o único requisito exigido era o diploma de jornalismo, instrumento que se tornou um autêntico alvará para algumas das maiores aberrações intelectuais de que já se teve notícia. Surgiram maravilhosos neologismos, como os célebres verbos "medrar", "amarelar", "pipocar", entre outras façanhas do léxico da bola. Com o passar dos anos, chegou-se à óbvia conclusão de que qualquer um poderia preencher este encargo, e o que já era bagunça virou o paraíso da alucinação. Humoristas, desocupados, débeis mentais de carteirinha, ex-árbitros, técnicos, jogadores e tudo o que veio à cabeça dos donos das emissoras passou a integrar o cotidiano da vida esportiva nacional. Pergunta-se até por que o velhinho da padaria ainda não foi convidado.
Imaginem a cena: "E aí, velhinho, o que você acha do esquema da seleção?" "Olha, meu filho, eu ainda não entendo porque o 'centerfor' está tão recuado. O time parece um ferrolho. E este goal-keeper não me inspira confiança." Qualquer dia desses, não será surpresa se o telespectador se deparar com sua mãe, uma pacata dona-de-casa, comentando o jogo pelo canal comunitário, aos berros inconformados com a atuação desastrosa do garoto que mais tarde lhe informarão ser o gandula.
Para compreendermos melhor a técnica que consagrou mundialmente o estilo do analista moderno, vamos recorrer ao nosso fictício boleiro Laudislei, que começou a carreira do Crudujudas de Cassilândia, onde se revelou como artilheiro do campeonato da Associação de Bairros.
Descoberto por um olheiro do Atlético de Pirapora, não tardou a chamar a atenção dos radialistas da cidade, que o viam como o novo Trapizomba, nome do lendário recordista em bolas na trave numa única partida. Após marcar o gol de honra da equipe na derrota de 15 a 1 num amistoso contra o time C do Operário de Campo Grande, Laudislei foi imortalizado com uma escultura de areia no parque infantil. Emocionada, a imprensa local fez tanto alarde que um colunista do "Correio Mineiro" cujo carro havia enguiçado decidiu vê-lo em ação. Foi o dia de sorte de Laudislei, que marcou, de pênalti, um dos gols mais bonitos de sua vida. Dois meses depois, era contratado por vinte pares de chuteiras para integrar o elenco do Varginha Futebol Clube, onde ganhou o apelido de goleador intergaláctico da quinta divisão mineira.
Foi nessa época que a emissora de rádio local divulgou a proposta que teria sido feita pelo Cruzeiro para comprar o passe do novo craque. Na verdade o jogador pretendido era Ladislau, zagueiro do Vila Nova, mas a simples especulação bastou para que o Valério Doce se interessasse pelo astro do outro mundo. Foi quando o poderoso Atlético Mineiro, em pleno campeonato regional, sofreu uma incrível derrota para o Valério, com dois gols de Laudislei. Desta vez a TV da cidade foi ao pós-delírio, com os analistas anunciando o surgimento do maior jogador brasileiro dos últimos quarenta anos. Em dois meses, ele já era contratado pelo Fluminense, que ainda tentava retornar à primeira divisão do Campeonato Brasileiro.
Não foi dessa vez que o time das Laranjeiras se safou do vexame, mas Laudislei continuava nas graças dos comentaristas. O tricampeão Gérson, embora não tenha visto um jogo sequer, já escalava o ataque de sua seleção com Ronaldinho e Laudislei, no que era endossado por Carlos Alberto Torres, depois do vigésimo quinto chope. Jorge Benjor já preparava os primeiros acordes de "Ei, ei, ei, Laudislei desbanca o rei!" Com tanto clamor proveniente de indivíduos tão conceituados na crônica esportiva, Laudislei só podia seguir o destino de outros craques ciganos, e entrou em grande estilo como novo companheiro de Romário no Mengão, para compor o novo time dos sonhos rubro-negros. Como já era de se esperar, mais uma vez o Flamengo se despediu prematuramente do Campeonato Brasileiro, mas Laudislei ainda saiu no lucro, fazendo sua primeira partida pela Seleção e marcando, de cara, um gol contra a temível seleção da Cãodávia do Norte. De quebra, passou a ser sondado por clubes europeus e japoneses, além de ter acertado um contrato de patrocínio com uma marca de material esportivo e feito uma ponta num episódio do "Você Decide".
Mas a nova temporada não seria tão generosa com o novo craque. Ao deixar de comparecer num programa de debate futebolístico alegando apenas uma crise de diarréia, Laudislei começou a criar alguns críticos de plantão, e passou a ser perseguido sem trégua a cada derrota e vitória de seu time. Se fazia um gol, o mérito era de quem lhe passava a bola. Se dava uma assistência, só se falava do jogador que marcou. "Ele não está num bom momento" "O sucesso subiu-lhe à cabeça!" "É um tremendo dum mascarado!". Veio uma expulsão (num lance em que sofreu uma entrada por trás e nem chegou a revidar) e a fama de rebelde e indisciplinado. De unanimidade, tornou-se mais uma promessa decepcionante, embora, curiosamente, estivesse sendo muito mais efetivo que no ano anterior. O que veio depois já era de se imaginar: foi sumindo, sumindo, até encerrar a carreira num desses Quinzes da vida.
O que Laudislei ignorava completamente
era o fato de que, no futebol, o processo da destruição vai
de mil a menos mil. Em outras palavras: a mão que afaga é
a mesma que apedreja. Por mais que ele se esforçasse, não
conseguiria impedir o desenrolar de uma trajetória que vem se repetindo
desde a era da bola de capotão. Quantos Laudisleis não despontaram
e desapontaram nos gramados canarinhos, e quantos outros não haverão
de surgir para depois afundarem? Com alguma sorte, reaparecerão
como treinadores de equipes sem expressão, ou, quem sabe, como comentaristas
esportivos...
Gustavo Fernandes