LER É DESCOBRIR?

por Giba Assis Brasil

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O texto abaixo foi a minha participação no debate "Ler é descobrir? ", promovido pela Feira do Livro deste ano, no Salão de Bridge do Clube do Comércio, dia 10/11/99. Também faziam parte da mesa o Ernani Ssó (que está para relançar o seu "Emblema da sombra"), o Furio Lonza (autor de "O Que é isso, maconheiro? ") e o Gustavo Finkler (músico do grupo "Cuidado que mancha"). Claro que o que está na tela foi o que eu consegui escrever antes, como preparação para o debate, mas a fala até que foi parecida. Transcrevo aqui porque me pareceu extremamente NÃO - no bom e no mau sentido. Leiam e descubram, ou vice-versa.

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Um grupo de médicos ingleses, coordenado pelo doutor George William Postlethwait, publicou recentemente um livro analisando os níveis da atividade cerebral durante a leitura, em diversas situações.

Eles descobriram, por exemplo, que uma criança recém alfabetizada exige muito menos do cérebro durante a leitura do que um adulto que já leu centenas ou milhares de livros. Ou seja: o aprendizado da leitura a rigor não deveria ser comparado, como muitas vezes é, a um esforço que vai ser recompensado com um prazer posterior, mas talvez como a iniciação num vício sem volta, que se alimenta de si mesmo e que exige uma atenção cada vez maior.

Ao mesmo tempo, avaliaram que, pra ler duas linhas de texto, é necessário a terça parte da voltagem cerebral que pra ouvir o mesmo texto falado, e menos da oitava parte que pra acompanhar e entender uma imagem em movimento durante 15 segundos. Isso, claro, pode nos levar a pensar que a aquisição de informações pela leitura, sendo mais econômica em comparação com a audição ou a visão de imagens, deixa maiores regiões do cérebro em alerta e capazes de pensar criticamente sobre aquilo que está sendo lido. Aliás, essa conclusão viria ao encontro da nossa idéia corrente a respeito de leitura: ler é uma atividade potencialmente mais crítica que assistir a um produto audiovisual qualquer.

Mas a conclusão do doutor Postlethwait e seu grupo é outra. Eles dizem que o cérebro sempre tenta se manter em atividade mínima, a não ser que seja estimulado por substâncias externas, que podem ser drogas como a cafeína, por exemplo, ou hormônios liberados pelo próprio corpo, como a adrenalina. 83% das pessoas pesquisadas pelo grupo do Postlethwait, quando submetidas a dois estímulos diferentes com a mesma informação, concentraram-se no que exigia menos esforço do cérebro - segundo ele, não pra poder ao mesmo tempo utilizar outras regiões do cérebro pra processar mais informações, mas simplesmente por preguiça.

Ou seja, quando a gente vê um filme com legendas, ainda que a língua original nos seja conhecida e mesmo fluente, a gente tende a ler as legendas e não prestar atenção na fala, e pior: a deixar de ver as imagens que estão em torno das legendas. Segundo Postlethwait, quem assiste a um filme com legendas vê, em média, menos de 65% das imagens do filme, porque passa pelo menos a terça parte do tempo de projeção lendo as legendas.

Mas o mais interessante do livro do doutor Postlethwait é quando ele compara os níveis de funcionamento do cérebro durante a leitura e durante outras atividades humanas. Como o sexo, por exemplo. Postlethwait verificou que, durante a leitura, o cérebro funciona numa voltagem bem maior que durante o sexo, mas numa região muito mais restrita. Ou seja, a leitura exige mais de uma determinada região do cérebro, enquanto que o sexo faz o cérebro trabalhar de forma mais harmônica e equilibrada. De onde se chega à conclusão que, em termos puramente cerebrais, o sexo é um "esporte" muito mais completo que a leitura.

É claro que este doutor Postlethwait não existe, que tudo isso que eu falei até agora é ficção, e de qualidade bastante duvidosa. Mas vocês acreditaram no que eu estava dizendo, pelo menos até certo ponto, porque a princípio não tinham motivos pra duvidar de mim, porque o que eu estava falando tinha a ver com o assunto proposto pra esta conversa e principalmente porque eu comecei dizendo que tinha lido isso tudo num livro.

Mas eu podia ter abusado ainda mais da boa-fé de vocês. Segundo um outro texto do Postlethwait (que eu acabei de dizer que não existe), publicado no New British Journal of Medicine, a credibilidade de uma informação qualquer aumenta em 47% quando esta informação é associada a um livro, mas em 83% quando a fonte citada é um artigo científico de uma revista estrangeira, mesmo inexistente. Mais: segundo Chomsky, se o autor citado é um nome conhecido, o aumento da credibilidade pode passar de 130%. Edmund Wilson chegou a escrever que, se o autor já morreu, a credibilidade da informação pode triplicar, ou aumentar em 200%. Mas, segundo a minha mãe, se o autor citado é parente do palestrante, a credibilidade cai a zero.

Eu não estou dizendo tudo isso apenas para fazer gracinha, ou para me colocar como uma espécie de advogado do diabo dizendo que vocês devem desconfiar da leitura, uma vez que evidentemente o objetivo deste encontro é estimular as pessoas a lerem cada vez mais, e a comprarem, de preferência, os livros das editoras que estão patrocinando este evento. Mas eu acho que nunca é demais chamar a atenção para o perigo que representa a preguiça mental: aceitar como verdade aquilo que se lê numa única fonte, ou pior, que se ouve de alguém que diz que leu aquilo, sabe-se lá onde, ainda que com a maior firmeza e segurança.

Provavelmente, se eu tivesse escrito e publicado todas essas bobagens que eu disse há pouco, com os autores citados de acordo com as normas da ABNT, muito mais gente ia acreditar e levar a sério. Mas eu não sei se teria coragem de fazer isso por escrito. Em primeiro lugar por medo de ser processado, apesar de que não existe na lei do direito autoral, que eu saiba, nenhum artigo proibindo a citação a autores inexistentes. Mas principalmente por medo de que, no papel, a brincadeira seja levada a sério. Até porque existem precedentes.

Aqui eu poderia citar dezenas de exemplos históricos de equívocos religiosos, políticos, filosóficos ou mesmo científicos provocados pelo fato de algumas ou muitas pessoas terem considerado uma coisa como verdade simplesmente porque ela estava escrita em um livro. Mas eu prefiro dar um exemplo mais simples, e mais recente.

Dois ou três anos atrás, um cara lançou aqui mesmo, nesta Feira, um livro cujo título era uma expressão em inglês grafada de forma errada: MAKING OFF, com dois efes. Como talvez vocês saibam, a expressão correta é MAKING OF, com um efe só, e significa "a feitura de", ou um produto audiovisual que mostra como foi feito um outro produto audiovisual, geralmente um filme ou uma novela ou um vídeo-clipe.

Mas o livro este não só usa no título a expressão errada, como ainda, na sua introdução, explica a origem desta expressão. Segundo o autor, MAKING OFF, com dois efes, significaria "fazendo com o que foi jogado fora". O que é bastante engenhoso, interessante, inventivo mesmo, só que não existe, nunca existiu, ao menos em inglês.

Digamos que amanhã ou depois aconteça uma catástrofe nuclear ou um grande terremoto, um furacão ou uma invasão de extraterrestres ou seja o que for que venha a varrer para sempre da face da terra os Estados Unidos da América do Norte ou mesmo todos os povos de língua inglesa. Pode acontecer de sobrar, entre os poucos documentos disponíveis para conhecer esta cultura e esta língua, o tal livro escrito em português, mas cujo título é uma expressão em inglês que nunca existiu. O que, neste caso, convenhamos, não vai fazer muita diferença.

É claro que o autor do livro não cometeu este erro de sacanagem, mas muito provavelmente por preguiça mental. Ele achou que a expressão se escrevia daquela maneira e fez uma série de suposições até encontrar uma que parecia explicar a origem da expressão, dentro dos conhecimentos que ele tinha da língua inglesa. Não foi ler a respeito, não foi verificar em dicionários, comparar, não foi sequer perguntar a opinião de um professor de inglês.

Como eu aqui, fazendo suposições a respeito do processo mental do sujeito sem ter sequer falado com ele. A diferença, eu acredito que ao meu favor, é que ele publicou as suposições dele como se fossem verdade, sem qualquer dúvida ou relativização, na capa, no título do livro, e pior: com uma explicação completamente falsa na introdução.

E aí eu chego a um ponto que me interessa: eu tenho, sim, um certo fetiche em relação à palavra escrita, e principalmente quando ela é publicada em livro - e acho que todos nós temos este fetiche, ou não estaríamos aqui discutindo se, afinal, ler é descobrir. Eu acho que escrever um livro é uma responsabilidade muito grande, que não pode ser feita sem um considerável grau de certeza em relação ao que está escrito, seja ficção ou não ficção. Eu já falei mais de uma vez que eu faço cinema porque não sei escrever bem o suficiente pra fazer literatura. Mas talvez o verdadeiro motivo seja outro: não a qualidade, mas o rigor.

É claro que a questão da responsabilidade sobre os limites entre o verdadeiro e o inventado, entre o registro e a manipulação, se torna ainda mais complexa nos produtos audiovisuais, com os quais eu trabalho, e especificamente em produtos como os telejornais, que a grande maioria do público supõe serem "a verdade", e por critérios bastante concretos: "não, eu sei que isso aconteceu assim, ninguém me contou, eu vi na televisão". Mas isso - o critério de verdade nos produtos audovisuais - é outra história.

O que eu me propus a questionar aqui, com essa pequena provocação, é o critério de verdade na linguagem escrita, e especificamente nos livros, que todos nós aprendemos a respeitar como a nossa principal forma de descobrir o mundo. Talvez a gente deva lembrar também que, sem o espírito crítico associado, que pode inclusive ser desenvolvido pela leitura, mas que não é um característica de qualquer leitura, feita por qualquer indivíduo em qualquer situação - sem este espírito crítico, ler muitas vezes pode ser encobrir.

Até porque, como disse o geneticista sueco Olaf Grünberg, "escreveu, não leu, o pau comeu".

Giba Assis Brasil
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