O CASO J. BAIANO

Por Gustavo Fernandes

 

 

Um dos fenômenos sociológicos revelado pela ascensão dos atletas negros em inúmeros esportes é o crescente ressentimento da maioria branca contra os seus altos salários e patrocínios milionários. Os Estados Unidos, como não poderia ser diferente, são o carro-chefe da discórdia. Nos últimos anos, dois pilares do desporto afro-americano, Mike Tyson e O J Simpson, viram-se às voltas com o longo braço da lei, atraindo a mídia internacional e proporcionando uma série de conflitos em potencial, pondo em xeque a já fragilizada paz entre as inúmeras etnias que habitam o território ianque. Enquanto isso, na terra da bola redonda, ainda não tivemos a oportunidade de ver uma real situação em que um grande astro negro corresse o risco de amargar o xilindró, exceto por não pagar pensão alimentícia. Mesmo o caso do ex-goleiro Edinho não conta, pois sua fama só se deve ao prestígio do pai. A questão é: considerando-se a sina nacional de copiar tudo o que dá errado na América do Norte, como seria a repercussão de uma história dessas por aqui?

Como não temos nenhum precedente, vamos fabricar um caso polêmico. Primeiro, devemos escolher um personagem ao mesmo tempo carismático e controvertido, meio-herói e meio-cafajeste, cuja fama atinja ao menos o Eixo Rio-São Paulo (daí para o resto do país basta um Jornal Nacional). Precisamos de um digno representante da comunidade negra, com a ginga do povo e o sangue da terra. E quem melhor que o folclórico zagueiro capaz de salvar e enterrar o time na mesma jornada, fosse como rubro-negro, são-paulino, palmeirense e até (ou principalmente, para nosso azar) na seleção canarinho. É claro que só podemos estar falando dele: J. BAIANO!

Agora que temos a estrela, falta apenas o crime. Foi encontrada morta, em Nova Iguaçu, a dançarina funk Zuleica Macieira, mais conhecida por seu nome de guerra, Nicole Topatudo. Seu corpo estava marcado por ferimentos pérfuro-cortantes que evidenciavam um bárbaro assassinato. A notícia passaria em branco, não fosse o jornal O POVO CARIOCA, em trabalho conjunto com a obscura revista O PODRE NA TV, descobrir que a vítima teve, na adolescência, um ligeiro "affair" com o então desconhecido juvenil do Flamengo que mais tarde receberia a graça futebolística de J. Baiano, destruidor de atacantes, o fino da baixaria e maior flagelo dos goleiros das equipes onde atuou (entre outros habituais comentários a respeito de seus folclóricos talentos).

Os jornalistas esqueceram a CPI que estavam cobrindo (cujo tema ninguém mais lembrava) para noticiar que haviam encontrado fortes traços de que a ligação entre os dois continuava estreita, pois o quarto da bailarina estava repleto de fotos e até um autógrafo do ídolo e possível amante. Houve até boatos de que o filho de Nicole era do próprio jogador, embora estivesse registrado em nome do ascensorista desempregado Alceu Limeira, seu marido.

O futrique chegou ao clímax quando o delegado José "o aparecido" de Oliveira decidiu indiciar J. Baiano como provável autor do delito. A versão era tão esdrúxula quanto assombrosa: J.B. teria matado Nicole para encobrir a suposta paternidade do bebê, oportunamente apelidado pela imprensa como J. BAIANO JÚNIOR. Para tal, após o treino do Palmeiras, embarcou na ponte aérea até o Rio de Janeiro, onde matou a pobre coitada a tempo de voltar para a partida do dia seguinte.

Apesar de não haver nenhuma prova de que J. Baiano realmente tivesse viajado na data do crime, o delegado concluiu que se tratava de uma tese engenhosa demais para ser desconsiderada, mesmo porque, se ele suspeitasse de um mero maloqueiro, sua promoção poderia demorar mais alguns anos para sair. As testemunhas arroladas pelo Ministério Público carioca afirmaram ter visto sair da casa de Nicole, minutos após o momento do crime, um indivíduo alto e negro, descrição que coincidia exatamente com o craque. Não havia sangue do assassino na casa, mas foi apontada a presença de uma garrafa de Coca-cola, refrigerante favorito de J.B., sem contar que o suspeito vestia uma camisa do Flamengo, ex-clube do virtual culpado pelo fim trágico de tão inocente criatura.

Não demorou muito e o caso estava na primeira página de todos os jornais e em todos os sites de notícias do mundo inteiro. Até a CNN foi atraída pelo escândalo, instalando um estúdio ao lado do Tribunal do Júri.

Para o interrogatório, J. Baiano foi escoltado por tropas da PM para evitar qualquer tipo de fuga. Ao depor, visivelmente nervoso ante o circo que se formara, insinuou que o juiz estava embriagado ("eu só fiz um sinal de que queria beber água", argumentou sem sucesso), quase sendo preso por desacato a autoridade. Feita a Pronúncia, marcou-se a sessão de Julgamento para um mês depois e foi decretada a prisão de J. Baiano até o dia do Júri.

O frenesi era descomunal, a ponto de se chegar a sugerir a transferência da Sessão para o Maracanã, o que só não ocorreu por divergências com a Suderj, que pretendia cobrar ingresso para o jogo, digo, Júri. A opinião pública estava dividida, mas militantes do PC do B e do MST garantiam que iriam ao Tribunal protestar contra a política econômica. Algumas celebridades televisivas como Ratinho e Chico Lang exigiam pena máxima, ao passo que colunistas sociais ridicularizavam o penteado da mãe de Nicole, nova estrela da novela das oito.

O Julgamento durou seis meses, por exigência da Rede Globo. Teve de tudo, inclusive um desfile da Imperatriz Leopoldinense, mais uma vez campeã do carnaval com o enredo "De Cabral a J.B., 500 anos de opressão". Foram ouvidos depoimentos de mais de trezentas testemunhas, entre elas o técnico Zagallo, o cronista Armando Nogueira e a modelo Adriane Galisteu. O Brasil parou no dia da sentença como se fosse final de Copa do Mundo.

E qual não foi a surpresa quando o derradeiro quesito foi concluído com EMPATE! Três jurados consideraram-no culpado, três o inocentaram e um morreu de enfarte na hora de votar. O juiz Egberto Castanheira não sabia o que fazer, mas sabia que se não pensasse rápido todo o Poder Judiciário seria levado ao total descrédito. Foi quando teve o lampejo salvador, a solução mais insólita já vista na história mundial do Direito Contemporâneo: DECISÃO POR PÊNALTIS!

Montou-se um gol na frente do Tribunal, e os seis jurados fariam as cobranças até se chegar a um veredito, com o promotor e o defensor na posição de goleiros. A eletrizante série de penais se estendeu até o último jurado, quando o pênalti absolvedor foi convertido. A comunidade negra exultou! Aliás, houve uma conciliação geral, com todos saindo do Tribunal abraçados, com a absoluta certeza de que, de um jeitinho ou de outro, a injustiça e o preconceito foram derrotados. E fez-se feriado até o fim do ano...