por Jorge Furtado
"Chego a mudar de
calçada
quando aparece uma
flor
e dou risada do
grande amor."
Chico Buarque
Quem não lembra em Romeu e Julieta das palavras com que ele, privado dos favores daquela que ama, se refere ao sentimento que lhe consome: "o amor é fumaça formada pelos vapores dos suspiros. Purificado, é um fogo chispeante nos olhos dos amantes. Contrariado, um mar alimentado por suas lágrimas". Romeu está apaixonado, não dorme, só pensa em sua amada, "belíssima, sabiamente belíssima" amada, cuja beleza "o sol, que tudo vê, nunca viu outra semelhante desde a aurora dos tempos": Rosaline.
Romeu ainda não conhece Julieta. Rosaline, prima dela, fez votos de castidade e não quer nada com ele. Qual a idade de Romeu? Julieta tinha treze, uma solteirona, "outras mais moças que ela já são mães felizes". A idade de Julieta é criação de Shakespeare, no poema de Broke ela tinha 16. Foi dele também a boa idéia de concentrar os acontecimentos, que no poema duravam nove meses, em cinco dias. Tudo leva a crer que Shakespeare escreveu a peça, que se passa em 1591, entre 1593-5 e que Julieta nasceu em 1 de agosto de 1577.
Não há referências na peça à idade de Rosaline mas não dependemos apenas dos exageros de Romeu para concluir que ela devia ser bem bonitinha. Mercúcio, ao tentar demover Romeu da idéia de invadir o jardim dos Capuleto, implora "pelos brilhantes olhos de Rosaline, por sua altiva fronte e seus lábios escarlates, por seu fino pé, esbelta perna e coxa palpitante e paragens ali adjacentes".
Romeu, um dia depois de conhecer Julieta, tendo ainda "sobre a face a marca de uma antiga lágrima" derramada por Rosaline, não lhe recorda nem o nome. E Rosaline desaparece da história. O amor de Romeu e Julieta deu no que deu, duplo suicídio e formação de cartel. Que fim levou Rosaline?
Em busca de Rosaline procurei as fontes da peça. Que eu saiba, nenhuma das histórias de Shakespeare é original. (Ai, os originais). Nem os sobrenomes Montecchio e Capuleto são invenções suas. São inspirados na Divina Comédia, de Dante, publicada em 1320. No sexto canto do Purgatório Dante fala das brigas entre as famílias italianas: "Vinde ver os Montecchi e Cappelletti (...) curvados pela dor ou pelo medo; vinde, homem cruel, ver o domínio da tirania dos vosso nobres, puni as suas maldades".
No filme "Shakespeare Apaixonado" ele escreve a peça inspirado pelo amor da bela Gwyneth Paltrow. Pura ficção, é claro, feita para enganar almas puras que pensam ser o amor inspiração de bons versos e não apenas uma boa desculpa para os maus. Rosaline também está no filme, não como uma virgem "ilesa, livre do arco infantil e fraco do amor", mas como uma mulher devassa, amante de Shakespeare e James Burbage (que construiu o primeiro teatro de Londres em 1576).
Reproduzo aqui parte do texto de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros (introdução em Shakespeare, Tragédias, Vol.1, ed. Abril, 1981).
"A tragédia de Romeu e Julieta é considerada verídica, citando-se mesmo como tendo-se passado nos primeiros anos do século XIV. Apesar disso, é tema muito antigo, já existindo na literatura grega história semelhante. (Talvez se refira ao romance Anthia e Abrocomas, um amor impossível entre filhos de famílias rivais, escrito por Xenofonte Epehesio no século II). Luigi da Porto é o primeiro a usar o nome de Romeu e Julieta. (Matteo) Bandello adapta a história (em 1554) que foi traduzida para o francês por Pierre de Boisteau de Lanauy. Artur Broke traduziu desta última fonte em versos ingleses, dando-lhe o título de Tragical History of Romeo and Juliet, com a qual publica seu poema em 1562. Foi daí que Shakespeare tirou a inspiração para sua tragédia, que segue fielmente a versão de Broke".
Carlos Alberto Nunes, no ensaio que serve de prefácio a sua tradução, tem outra versão para a origem da história.
"Em resumo: é puramente lendário o tema da tragédia de Romeu e Julieta. O próprio autor da História de Verona, Girolamo dalla Corte, teria recebido a narrativa dos romances medievais, muito embora indique a data de 1303 como a do encontro fatal dos dois amantes".
Nunes concorda que a fonte imediata de Shakespeare tenha sido o poema de Broke e cita ainda a versão da mesma história num dos contos do livro Palace of Pleasure, de Paynter.
O que inspira bons versos são, quase sempre, outros bons versos. O mesmo enredo aparece, também em francês, entre as Histoires Tragiques, de François de Belleforest, em 1559. Alguns historiadores acreditam que Shakespeare se baseou ainda numa história semelhante de Massuccion Salernitano, Novellino, publicada em 1476. E ainda em La Hadriana, tragédia de Luigi Groto (1541-1595) representada entre 1596-7. O texto de Groto só foi encontrado neste século, bem como sua comédia inacabada As Núpcias de Rosaline (La Hadriana, Lo Isach e Fragmentos, ed. Ariadne, 1986). É a história de uma jovem prometida em casamento a um nobre afetado de nome Gianni. Mas digamos que fosse Romeu.
No primeiro encontro, um jantar que reúne as duas famílias, Rosaline observa que Romeu deve ter perdido mais tempo que ela em "formosuras de vestuário e cabelo". Romeu quase não lhe dirige a palavra, preocupado em agradar seus pais e fazer tratativas sobre "a pompa, a beleza e o esplendor da cerimônia em que seriam celebrados os esponsais".
A primeira vez em que ficam sós, num passeio pelos jardins acompanhado à distância segura pela ama de Rosaline,
Romeu parece pálido, tosse muito. "Já sei que a morte a minha vida invade". Rosaline percebe que o inverno ainda não permite flores nos jardins mas que "as rosas não teriam aroma mais doce que o de meu futuro esposo".
Na festa de noivado Rosaline arrasta Romeu para uma varanda. Há pouca luz e, apesar da brisa da noite, ela sente na face "o rubor dos excessos, de vinho e juventude". Romeu quer voltar ao baile a tempo de dançar a pavana para a qual ensaiou "os passos e as mesuras mais gentis". Rosaline se aproxima de Romeu, sugere que a dança de salão mantém os pares muito afastados, que a luz dos espelhos e castiçais "ofusca meus olhos e paralisa meus lábios". Romeu interrompe. "Escuto afinar os violinos. Voltemos!" E sai para o salão.
A próxima cena se passa no atelier de Guilherme Minutolo, um pintor napolitano encarregado de fazer o retrato de noivado de Rosaline. Guilherme, um jovem de "pele morena e olhar risonho", trata a noiva com grande atenção. Sugere-lhe uma pose em três quartos, "a renda branca cobrindo-lhe o colo iluminado pela luz tênue de um candieiro". Romeu diz preferir a luz natural. E a seda ao invés da renda. Guilherme pede que ele espere no jardim enquanto esboça os primeiros traços de Rosaline.
A comédia de Groto nunca foi concluída ou parte se perdeu. A próxima cena já mostra Rosaline depois de seu voto de castidade. Romeu se desespera, passa as noites pelos bosques, com a "saúde enferma, sono em perpétua vigília", o mesmo estado de espírito em que inicia a peça de Shakespeare.
Há trechos de uma cena onde Rosaline convence seu tio a dar uma festa, um baile de máscaras "abrindo a casa aos pretendentes de minha prima Rafaela". (Digamos, Julieta. Ela e Romeu se conhecem num baile de máscaras). Rosaline ajuda Julieta a vestir-se para o baile, emprestando-lhe "os mais finos tecidos e pedras de raro brilho". Talvez tenha falado à prima sobre a boa prosa e os belos olhos de Romeu.
Rosaline, pelas anotações finais do autor, abandonou o voto de castidade e terminou seus dias em Nápoles, onde serviu de modelo "a alguns artistas que se pretendem jovens e a muitos jovens que se pretendem artistas". Nem ficou sabendo das mortes de Romeu e Julieta.
Jorge Furtado
<jfurtado@portoweb.com.br>