DOMINGO

Por Marcelo Träsel

 

Não havia ainda pressionado o botão do porteiro eletrônico e o pai, segurando a porta aberta, meio que se materializou ao meu lado, em suas sandálias de couro puídas, pernas rajadas de veias roxas e calções de futebol. A barba por fazer arranhou meu rosto quando nos desencaixamos de um abraço hesitante. Andei pelo corredor até a porta aberta do apartamento de meu avô brincando com as chaves do carro. O vô não estava. Disputando lugar com os jornais de toda a semana, sentei-me no sofá. Deu uma chupada no mate que já estava terminado, fazendo-o roncar, como que para mostrar que a cuia estava vazia, encheu outro e me passou.

- E a tua mãe?

Respondi que a mãe continuava como sempre: trabalhando dia e noite, como sempre; discutindo em altos brados por qualquer coisinha, como sempre; olhando-me de viés quando eu como sempre não ia aos dominicais almoços de família, como sempre. O pai concordou balançando a cabeça e proferiu a frase ritual: "tu sabes como é a tua mãe". Tinha razão, eu sabia, e sabia melhor do que ele. Então não convivera muito mais tempo sob o mesmo teto com ela do que o próprio pai? Mas ele viu apenas o filho beber o chimarrão olhando para o monte de erva-mate úmida, não estes pensamentos. Enchi a cuia para o pai, que me deixou sozinho na sala e foi terminar de arrumar suas malas.

- Como vai a faculdade?

Muito bem, obrigado, meu boletim é a maior coleção de notas A de todo o curso. O pai soltou lá do quarto uma frase de aprovação. A mesma frase de todos os domingos à noite, replicando à mesma resposta que eu dava à mesma pergunta. No próximo fim-de-semana, iria responder que havia sido reprovado em todas as cadeiras, só para conferir se ouviria a mesma réplica. Levantei-me e examinei os livros do vô na prateleira à minha frente. Folheei os mesmos volumes de sempre, e mais uma vez me senti tentado a os tomar emprestados e não devolver nunca mais. O gosto de meu avô para literatura era excelente. Queria que ele estivesse lá para tomar um chimarrão comigo e discutir as últimas da política gaúcha. Ouvi água correr na pia do banheiro. O pai apareceu barbeado, vestindo calças jeans e uma camisa listrada.

- Namorando muito?

Lembrei-lhe que não tinha tempo para ficar passeando no parque e comendo pipocas com a namorada o dia todo desde que entrara na universidade e começara a trabalhar. Além do mais, ela também passava o dia entre a repartição e a sua faculdade. Só não falei, enquanto pegava o chimarrão sob seu olhar amorfo, que na maioria das noites íamos até minha casa, depois da hora em que todos dormem, fazíamos amor e então eu a levava sonolentamente de volta para casa, num bairro afastado. O pai consideraria um exagero ter tanto trabalho por uma hora de sexo ao dia. Terminei o mate e ele me pediu ajuda com as malas. No carro, perguntou-me o que eu havia feito durante todo o fim-de-semana. Respondi com um trabalho de faculdade na casa de amigos, barzinhos nas noites de sexta e sábado, leitura de artigos para a faculdade no domingo à tarde. Vida ocupada, pai, sabe como é, sorte termos pelo menos este tempinho antes do horário do ônibus todas semanas.

Na frente da rodoviária, troquei a fita no rádio enquanto o pai pegava a bagagem no porta-malas, para entrar no ônibus e agüentar as oito horas de viagem. Ele veio, carregado, até a janela do passageiro:

- Vais me visitar, qualquer dia destes?

Como sempre, respondi que iria.

 
Marcelo Träsel
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