Por Daniel Galera, que conhece os acentos diferenciais
Saiu do prédio e correu em direção à parada, o ônibus já estava chegando lá adiante na avenida. Fez sinal, meteu as mãos de volta no bolso e soltou um bafo de vapor no frio da cidade, que anoitecia. Subiu e entregou uma ficha ao cobrador anão. Havia apenas dois lugares vagos, ambos no corredor. Sentou no mais da frente, ao lado de um sujeitinho gordo com uma touca dos Indiana Pacers na cabeça. O ônibus avançou um pouco, passando pela frente do apartamento da namorada, de onde ele recém havia saído. Olhou para cima mas não conseguiu ver nada através da janela da sala.
Acomodou-se melhor no assento, que era quase todo ocupado pelo sujeitinho gordo. Sentia o corpo mole, uma sensibilidade excessiva nas juntas, latejamento nas têmporas e um gosto doce na boca. Então ocorreu-lhe: o cheiro. Aproximou a ponta dos dedos ao nariz, como se pretendesse coçá-lo, e inspirou. Secreção vaginal. O ônibus parou e duas dúzias de pessoas embarcaram, manadas de estudantes e trabalhadores retornando para suas casas na noite gelada, enrolados em mantas e casacos de lã acrílica, pastas debaixo do braço, walkmans, narizes fungando. O corredor encheu-se de gente. Ao lado dele, em pé, ruminava uma provável estudante secundarista, de cabelos loiros lisos compridos e rostinho de anjo.
O homenzinho gordo a seu lado remexeu-se, parecia querer afastar-se dele, grudar-se na janela embaçada. Teve a clara impressão de que estava fedendo. Os outros passageiros deviam estar sentindo. Cheirou novamente os dedos, o odor era fortíssimo, os fluidos de Rafaela. A garota a seu lado inclinou-se pra cima dele, dando passagem a uma senhora que carregava meia dúzia de sacolas de supermercado e pedia a alguém que fizesse o favor de puxar a cordinha. Olhou rapidamente para o rosto da garota, que desviou o olhar, evitando contato. Engoliu a saliva, estava grossa, viscosa, doce. Os lábios colavam-se ao menor contato. Sentiu o rosto oleoso, a cara que há dez minutos atrás estava metida entre as pernas de Rafaela, a cueca um pouco melada pelo sumo apressado de sua próstata, e agora pelo leitoso fluxo de uma leva de espermatozóide atrasados, os filhos da puta, que até agora escapavam-lhe pela ponta do pau achando que iam encontrar alguma coisa. Aterrorizado, imaginou-se inteiro, os dedos, mãos, boca, rosto, pescoço, caralho, as roupas!, meu Deus, as roupas, tudo cheirando a buceta.
Percebeu que devia estar coberto de secreções, e que sua letargia pós-coito não passaria despercebida pela multidão do ônibus lotado. O homenzinho gordo certamente já estava incomodado, fazia o possível pra se espremer contra a janela e freqüentemente arranhava a garganta produzinho um som áspero, o que podia ser nada mais do que um procedimento padrão para soltar seu catarro, mas que soava como uma agressiva seqüência de indiretas. A loirinha de colégio estava nitidamente desconfortável, e ele podia jurar que ela esforçava-se para respirar apenas pela boca e conter o fôlego. Ao lado dela, um cara de terno cinza ria, olhando para algum ponto distante na rua.
Arrependeu-se de não ter lavado pelo menos o rosto e as mãos antes de sair do apartamento de Rafaela. Simplesmente gozaram, ele meteu as roupas e escapuliu escada abaixo. Melhor sair por aí todo melado do que correr o perigo de dar de cara com os pais dela, sem dúvida, mas nem passou pela cabeça o constrangimento de entrar num ônibus lotado coberto de fluidos fresquinhos. Podia ter lavado o pau na pia, como fazia na casa da Gisele, a namorada anterior, pra garantir a chupada. Rafaela era diferente, com ela tudo tinha gosto e cheiro bom, engoliam-se com toda a naturalidade. Os passageiros do ônibus não estavam nem um pouco interessados nisso. Rafaela beijando e gemendo ao mesmo tempo. Rafaela pedindo. Rafaela abocanhando seus mamilos e prendendo seu pau entre as coxas. Rafaela deitada de lado, descansando, quase dormindo. Rafaela gozando. Rafaela transbordando. Quando percebeu, estava de pau duro.
A ereção despertou-o de volta para a realidade do coletivo entupido de gente. O pênis apertou-se através da cueca samba-canção e contra a calça de brim, era quase impossível esconder. Não ousou olhar para a loirinha pra conferir se ela estava ciente da situação. No banco da frente, uma criança de uns dois anos debruçava-se por cima do ombro da mãe e fitava-o com olhos gigantescos e brilhantes, mastigando e babando um pedaço de bolacha Maria e estendendo a mão minúscula em sua direção. Começou a suar. De vez em quando, outros passageiros viravam a cabeça e censuravam-no com olhadelas rápidas, reprovadoras. Ou será que não passava de impressão sua? Comportamento paranóico, decerto, interpretação distorcida de detalhes da realidade resultando numa ilusão de perseguição. Desconfiança. Conceito exagerado de si mesmo. No caso, de seus odores.
O desconforto beirou o insuportável. Amaldiçoou o calor dos corpos amontoados, janelas fechadas e já completamente embaçadas, ambiente propício à ação dos olfatos. Faltavam apenas três paradas. Levantou-se do banco, espremeu-se entre a loirinha e o cara de terno, que continuava rindo sozinho, e atingiu o meio do corredor. Deixou o assento vago atrás de si, e teve a impressão de que ele ficaria vago por muito tempo mas, quando olhou de novo, a própria loirinha estava sentada, sorrindo para a criança do banco da frente.
Desceu na sua parada aliviado. O frio era terrível. Ele se encolheu e avançou o passo, precisava ainda percorrer os três quarteirões que haviam entre a casa e a avenida No caminho, reprisou mentalmente a situação do ônibus, e pareceu-lhe claro que seu constrangimento era uma bobagem. Provavelmente ninguém estava sentindo cheiro nenhum, só ele. Mesmo assim, divertiu-se imaginando de que maneira aumentaria este incidente para contar para os amigos. "Imaginem só, eu dentro do ônibus lotado, com a cara cheia de buceta, todo mundo me olhando". Ia gerar risadas, ele ia sentir-se bem. Ia se sentir um fodão.
Estava sem chave, bateu na porta e a mãe abriu. Entrou já
dando um "Oi" pra mãe e pensando em tomar um banho bem quente.
Mas a mãe chamou sua atenção: "Vem cá", disse,
e estendeu a mão na direção do rosto dele, tocando-o
logo abaixo das narinas. "Tem um cabelo no teu nariz", emendou ela, mostrando
entre os dedos um fio negro que ele reconheceu prontamente como um pentelho
da Rafaela.
hmmm. Cheiro de NÃO aqui