por Carlos Gerbase
que vocês sabem quem é
Lembro do número 100 do Pasquim, uma edição especial, encadernada como revista, em que Rubem Fonseca escreveu um artigo com o título "Palavrão não é pornografia". Eu era um adolescente de merda, mas já arriscava alguns contos e já me preocupava com algumas reações ao que escrevia (meu pai dizia que eu usava "muitas palavras sujas"). Gostei de ler o artigo: Fonseca afirmava que a literatura podia usar palavras de baixo calão e referir-se ao ato sexual, em suas inúmeras variantes, sem que isso significasse necessariamente produção de pornografia. Aquilo me encorajou. Na época, eu não gostaria de ser classificado como pornógrafo. Hoje não me importo mais.
Um pouco mais tarde, tive uma experiência singular, no Concurso Habitasul-Correio do Povo de Revelação Literária. Um dos contos que escrevi, "Comigo Não", venceu uma das etapas mensais e estaria no livro a ser lançado na festa de encerramento do concurso, no Hotel Laje de Pedra. Uma semana antes da festa, o Jaime Copstein, que trabalhava no Correio e estava envolvido na promoção, me ligou, dizendo que o meu conto continha certas palavras, digamos assim, "incompatíveis" com a publicação e com a imagem das empresas patrocinadoras. Eu tinha que fazer uma escolha: retirar aquele conto (eu ainda teria um outro, "O caso da camiseta", no livro), ou aceitar que algumas dessas palavras "incompatíveis" fossem abreviadas. Meu orgulho adolescente e minha imbecilidade permanente me fizeram escolher a última opção, da qual me arrependo até hoje.
Vejam só como ficou um trecho do texto: "Deixei as coisas bem claras: se eu notasse alguma coisa, saía dando. Nela, no p. do Armando e nos frescos dos amigos dele. A Soninha me olhou com cara assustada. Eu pensei, essa p. tem culpa no cartório". Beleza, não? Todos os "putos" e "putas" viraram "p." Mas, no início da leitura, qualquer leitor desavisado poderia entender que o personagem queria bater "no pau do Armando", ou "no patinete do Armando", e vez de "no puto do Armando".
Enfrentei várias outras censuras, prévias ou posteriores, explícitas ou implícitas, principalmente no cinema. Lembro das sessões especiais para o sr. Bispo da Hora dos filmes super-8 que produzíamos no início da década de 80. Em "Deu pra ti, anos 70", o problema foi a cena do acampamento, em que os personagens fumavam maconha. Mas, em "Sexo e Beethoven", voltamos a discutir os limites da pornografia. O censor disse que teríamos de retirar um minuto inteiro (num filme de vinte e quatro minutos), porque havia "exposição do membro masculino" (no caso, o membro de Pedro Santos).
Eu e o Nelson cortamos o tal minuto na frente dele, projetamos o filme para o público no Festival de Gramado com a versão censurada (o sr. Bispo da Hora estava presente, conferindo), e depois conseguimos reunir o júri para, numa sessão secreta, ver o filme sem o corte (foi só colar o minuto de volta). Na época, isso era uma verdadeira insurreição, um ato de rebeldia contra a ditadura. Foi divertido. Mas não deixou de ser um absurdo. Ganhamos o prêmio de melhor super-8 gaúcho e depois o filme cumpriu temporada no Studio Flávio Del Mese, junto com o filme "Bicho-Homem", de Tuio Becker e Cláudio Casaccia, no programa duplo que chamamos de "Cinema Liberado". Liberado? Nem tanto. Acho que, nas primeiras sessões, com medo da censura do Hora, ainda projetávamos a versão censurada. Depois colamos o tal minuto, o tal membro decepado, e ninguém veio nos prender.
"Os Replicantes" tem um dossiê farto de censuras, tanto oficiais quanto da própria gravadora. No primeiro LP "O futuro é Vórtex" (1986), a censura federal proibiu a execução pública (nas emissoras de rádio) de três músicas: "Choque", "Mulher enrustida" e "Porque não", todas porque continham palavras "de baixo calão". A gravadora RCA, não contente com isso, fez ela mesma um corte radical na música "Porque não", que continha a frase "Eu quero que o Caetano vá pra puta que o pariu". O "vá pra puta que o pariu" desapareceu da faixa, como se o Wander, de repente, ficasse mudo. A justificativa é que "não ficava bem" atacar um artista de outra gravadora.
No segundo disco, "Histórias de sexo e violência" (1987), a fúria moralista continuou. A faixa "Sexo e violência" foi vetada à execução pública e a letra inteirinha de "Adúltera" (do nosso amigo Zico) foi proibida, com exceção do refrão (que é "Adúltera, adúltera, adúltera, adúltera"). Até hoje recebo e-mail de fãs da banda perguntando qual é a letra desse música: "Você, mulher solteira, só pensa em se casar, ter um pênis só pra si, constituir um lar. De dia lava roupa, de noite quer trepar, mas seu homem tá cansado de tanto trabalhar. Adúltera, etc.".
Depois da constituição de 88, que colocou algumas salvaguardas à liberdade de expressão, a censura oficial tornou-se muito mais branda. A partir daí, as censuras paralelas assumiram definitivamente a dianteira. Às vezes, a palavra "censura" pode parecer um pouco demasiada, mas a minha tese é de que, no final das contas, o resultado é o mesmo: alguma coisa que foi (ou será) criada por alguém é impedida, no todo ou em parte, por razões altamente subjetivas, de chegar ao leitor/espectador/ consumidor.
Já assistiram aos canais 79 e 80 da Net? O 79 é o canal da Playboy, que simplesmente dubla a programação americana; o 80 é chamado Sexy-Hot, que apresenta filmes - quase todos americanos - sem dublagem e sem intervalos comerciais. Eu pensava que era possível aplicar os rótulos clássicos do erotismo aos dois canais: o Playboy seria softcore, enquanto o Sexy-Hot seria hardcore. Mais ou menos a diferença entre uma revista Playboy e uma Anal Intruder. Mas não é nada disso.
Apesar do canal Playboy ter programas realmente soft, com modelos nuas fazendo caras e bocas para a câmara, sem história, sem contato físico entre seres humanos (o que, convenhamos, é uma chatice atroz, porque não dá pra virar a página quando se quer), também tem filmes eróticos com atos sexuais, em suas infinitas variantes, com muitos e prolongados contatos físicos entre seres humanos. Mas há UMA diferença entre as imagens do canal Playboy e as imagens do Sexy-Hot. Enquanto no último vemos TUDO o que vemos nas fitas alugadas em qualquer locadora de vídeo, no Playboy vale TUDO MENOS AQUILO. TUDO mesmo, MENOS o velho membro masculino.
Esse estranhíssimo código de censura produz efeitos muito engraçados, principalmente nos enquadramentos. Imaginem um boquete clássico (e todo filme desse tipo tem pelo menos um) em que é permitido (e necessário) mostrar a garota chupando, mas não é permitido mostrar o membro chupado. O quadro fica estranhíssimo: da testa até embaixo do nariz, cortando a boca. E a garota se movimenta, é claro. Que trabalheira para o camera-man! Imagino uma reunião da associação dos diretores de filmes da Playboy, em que eles ouçam, interessadíssimos, palestras do tipo "Novas estratégias para esconder o pau e manter a verossimilhança da trepada". Porque, sem dúvida, essa deve ser a principal preocupação no set. "Agora coloca aquele vaso de flores em cima da mesa... Não. Mais perto do membro... Isso. Perfeito. Vamos lá, pessoal. Força!"
Por quê diabos o canal Playboy pode mostrar a buceta e não pode mostrar o pau? Por quê as mulheres podem colocar aqueles cintos com paus de plástico e enfiar os ditos onde quiserem, sem problema nenhum? E vemos os paus de plástico, ao vivo e a cores, em plena penetração! Portanto, não é o ato em si que é "inconveniente" ou "incompatível" com o canal Playboy (e a revista Playboy). É a imagem do membro, o membro de verdade, o tal membro que o sr. Bispo da Hora mandou cortar no nosso pobre super-8 há vinte anos. O membro, parece, ainda é o tabu máximo para os leitores/espectadores da mega-empresa Playboy. Considerando que até o cinema tradicional já enfrentou, pelo menos parcialmente, esse tabu, através do filme francês "Romance" (com a exibição do membro de Rocco Sifreddi), esse código anti-pau parece ser um pouco anacrônico. Liguem logo no 79, antes que a brincadeira acabe.
Censurar sempre foi um ato patético. O mais famoso código de censura para filmes, o Hayes (que vigorou, em diferentes versões, da década de 30 à de 50, nos Estados Unidos) estabelecia que, se um casal, mesmo casado, estivesse sozinho no quarto (os dois sentados na mesma cama ou em camas separadas), o homem deveria manter sempre um dos pés no chão. Para sorte dos cineastas da década, isso é um pouco mais fácil de enquadrar que a política de membros-não do canal Playboy. Mas, convenhamos, é tão ridículo quanto.
Concluindo: toda forma de censura que já vi na vida pode ser resumida pela frase: "Tudo menos aquilo", sendo que o "aquilo" é definido por alguém em função do que ele considera "inadequado" ao leitor/espectador/consumidor. O censor oficial - institucionalizado, apoiado em leis e códigos escritos - é uma espécie de intérprete da atual moral da família de classe média, célula-mater da sociedade. O censor eventual - que age ao sabor dos acontecimentos, sem regras estabelecidas - é um intérprete da moral de um grupo menor de cidadãos. Mas as conseqüências da ação destes dois tipos de censura é, na essência, o mesmo.
Vamos ver, um por um, os exemplos que dei de "Tudo menos aquilo":
TUDO | AQUILO | CENSOR | CONSEQÜÊNCIA |
Conto "Comigo Não" | As palavras "puto" e "puta" | Concurso literário que premiou o conto | Texto truncado e dúbio |
Filme super-8 "Sexo & Beethoven" | Membro de uma ator (em posição de descanso) | Chefe da censura na época | Um minuto a menos de filme em algumas sessões públicas |
LP "O futuro é Vórtex" dos Replicantes | "Eu quero que o Caetano vá pra puta que o pariu" | Gravadora RCA | Vocal da música: "Eu quero que o Caetano..." (silêncio) |
Filmes eróticos no canal Playboy (1999) | O membro masculino (em descanso ou não) | Canal Playboy | Enquadramentos absurdos, membros "escondidos" |
Casais em cenas de cama de filmes de Hollywood (décadas de 30 a 50) | Homem e mulher totalmente deitados (o homem tem que ficar com um pé no chão) | Código Hayes | Ações absurdas; ginástica do ator para manter o pé no chão |
A verdade é que vamos entrar no ano 2000 convivendo com códigos de censura tão absurdos quanto os que vigoravam no início dos 1900. Driblar esses códigos institucionalizados até pode ser uma coisa divertida, mas, para isso, é preciso conhecê-los. Infelizmente, é impossível driblar uma censura feita sem critérios estabelecidos e executada depois da obra estar concluída. Esta é a censura mais comum na virada do século: a que determina o "aquilo" a partir de uma avaliação rápida e superficial (por isso, quase sempre reacionária) dos limites da tolerância de uma certa faixa de público. O famoso artigo de Rubem Fonseca no "Pasquim" continua atualíssimo, e a sua urgente republicação seria bastante útil na luta - sempre inglória, é claro - contra todas as formas de censura e suas conseqüências na difusão das obras de arte e na liberdade de expressão em geral.
NOTA DE EDITOR: E ainda tem o filme Dogma, do Kevin Smith, em que o AQUILO é a Alanis Morissette no papel do deus cristão.
NÃO é aqui