TANGO SOBREMESA
por daniel pellizzari
a.k.a. mojo 

dia de faxina no prédio. aproveitaram para levar o velho dos tangos. abriu a porta ainda a tempo de ver o corpo descendo pelas escadas, coberto por um pano branco. nunca conheceria o rosto que lhe dera muitos mi buenos aires queriiiiiiiiiiiido depois do almoço. coberto pelo pano, o velho parecia tão abafado quanto os tangos que escutava durante toda a tarde. seria mesmo um velho? os discos que ouvia certamente o eram, mas não são só os velhos que morrem. fechou a porta.

como não tinha nenhum disco de tango em casa, resolveu caminhar um pouco. perambular: a beleza está nas palavras, não nas ações. comprou uma carteira de cigarros e lembrou que o prédio era cheio de pessoas velhas. como poderia ter certeza de que o tocador de tangos era ex-dono do corpo que vira? bem, esta tarde não ouvira os tangos, pensou, orgulhoso de sua educação cartesiana. decidiu que não precisava perguntar nada ao pequeno aglomerado de pessoas em frente a seu prédio. caminhou.

os dias ficam estranhos no início da primavera, a estação que a natureza reservou para a cópula. não tinha com quem se dedicar às atividades sugeridas pela estação. isso era uma situação comum, mas nos últimos tempos andava cansado da própria mão. passou-a pelo cabelo, acendeu o primeiro cigarro da carteira e levantou do banco da praça. uma criança tropeçou em sua perna e ele reagiu com um sorriso. a garotinha colocou um dedo perto da orelha e ficou encarando- lhe de baixo para cima. um dia ela cresceria, e precisaria se ajoelhar para obter o mesmo ângulo. nada com o que não pudesse se acostumar, e o faria - não só nas primaveras. puta, vagabunda, chupadora.

fazer o quê se ainda não A tinha encontrado? não se importava com os outros que riam quando ele se declarava um romântico, o último suspiro da cortesia medieval. nos dias de hoje, poucas mulheres se prestam ao papel de musa. vulgares, todas. mesmo a garotinha da praça já possuía uma certa aura lasciva com suas roupas curtas, até maquiagem usava. menina de sete anos vestida como vadia, olhando como vadia, provavelmente pensando em coisas de vadia. se existem culpados, devem ser as mães. lembrou de seu professor de Literatura do segundo grau, vociferando "hoje em dia só existe namoro por bolinação". dedos grossos como charutos estourando no quadro negro, marcando o passo da ladainha: namoro por bolinação, namoro por bolinação, namoro por bolinação. existem bons e maus professores, mas preciosos são aqueles que nos revelam as Verdades.

nunca tivera um envolvimento duradouro com mulher alguma. sentia nojo quando percebia nelas a fraqueza em resistir aos apelos fáceis da carne, e elas logo se cansavam de sua insistência pelo cultivo do amor metafísico. enganava seu platonismo seguindo mulheres na rua. não tinha nenhum critério especial: apenas escolhia. hoje foi uma mulher baixinha. cabelo chanel, batendo no ombro, lã marrom, nada de mais. com a mão esquerda ela segurava com força o punho do blusão, enquanto a outra balançava com os dedos em forma de cunha. fez o mesmo, copiou o movimento das pernas, a posição da cabeça em relação ao corpo, essas coisas. ela parou para olhar a vitrine de uma floricultura, ele também, mesmo sem ter muito gosto por flores. começou de novo a caminhar, ele atrás, passo a passo, ela desvia de umas pedras, ele foi pela esquerda da lixeira, pernas juntas, ficou pensando olha pra mim olha pra mim olha pra mim. não funcionou, mas às vezes dá certo. e assim foram pelo mesmo caminho, entraram no prédio sem nem olhar para as chaves, é hábito -vai só pelo tato. porteiro, elevador, porta do apartamento, e então sentaram na poltrona da sala e bem devagar, amolecendo o corpo, tiraram os sapatos. Ele está parado na frente do prédio. Já passa do meio-dia, mas ainda não surgiu nenhum sinal de fome. com a escolhida do dia já dentro de casa, provavelmente tomando um banho (água morna escorrendo em um corpo macio sem ser flácido, mãos passeando pelos seios, pelas coxas, por dentro para deixar tudo bem limpo, melhor não pensar: namoro por bolinação, namoro por bolinação, namoro por bolinação), a única coisa a fazer era continuar caminhando.

foi dobrar a esquina e vislumbrar o paraíso. passou pelo portão, diminuiu a velocidade dos passos e acendeu mais um cigarro. Penetrou com cuidado nos corredores, desviando o olhar dos muitos rostos que o observavam. pegou algumas das flores e enfiou no bolso da camisa. lembrou do velho dos tangos; ele gostaria do lugar. enquanto procurava o isqueiro, chegou perto do fim do corredor e enxergou uma sala. entrou. desistiu do cigarro quando A viu.

talvez fosse Ela.

?

parecia Ela.

...

era Ela.

!

e aqui está ele, frente à Mulher que é a resposta para todas suas orações, uma pequena epifania bufa, completamente inesperada. é como um sonho: se aproxima com cuidado e lhe oferece uma das flores que colocara na camisa. Ela finge não perceber, mas quando ele diz as primeiras palavras bonitas que lhe vêm a cabeça enxerga um leve sorriso se formar na pele muito branca. um anjo. tocado por esse incentivo, declara a porção de amor que guardara durante toda sua vida. enfim, é primavera. quase chora quando escuta a voz doce que lhe pede um beijo. com cuidado se inclina e encosta de leve seus lábios nos dela, respirando fundo seu perfume, ácido mas agradável. ela pede mais um beijo, e ele reúne a coragem para jurar seu amor e pedi-la em casamento.

perdido nos beijos, nem percebe muito bem quando as outras pessoas entram na sala e correm em sua direção e lhe batem na cabeça e o chamam de monstro doente marginal tem que matar esses filha da puta mas monstros são eles, que não sabem enxergar a beleza, monstros são eles que não respeitam a primavera e as juras de amor, monstros são eles que insistem em chamar sua Amada de o cadáver, a morta, a falecida.

Mais mojo, mete a mão aqui