Deu nos jornais do domingo: festa do redescobrimento tem pelo menos 100 presos (Estadão). Alguns jornais, como a Folha, eram mais específicos: 141 presos (faltam só dez para completar o valor do salário mínimo). Dias antes da data de 22 de abril de 2000, Porto Seguro é cercada por barreiras de polícia que fiscalizam tudo e todos que entram na cidade. Índios e demais manifestantes são mantidos à distância, usando força, tiros e bombas. Preocupante. Grave. E nada desconhecido da nossa história.
Aliás, lembra alguma coisa?
A campanha das diretas já incendiava o Brasil em 1983/84. A efervescência dos comícios culminaria na votação da emenda Dante de Oliveira, feita para possibilitar a eleição direta para presidente. A ditadura militar estava em seus estertores, e seu exorcismo se daria em Brasília, naquela votação.
Mas não tão fácil. Brasília semanas antes foi colocada sob "lei de segurança". Capa da Veja de então: o Congresso Nacional ao fundo e em primeiro plano uma placa "PARE". Não me lembro mais a manchete, mas a imagem era muito mais poderosa e interessante. Nem ao menos as rádios e tvs podiam transmitir as parciais da votação. As que tentavam eram tiradas do ar.
A capital foi fortemente policiada, vigiada e chicoteada pelo General Newton Cruz. Aliás, o presidente Figueiredo se referia ao general carinhosamente como "O Nosso Mussolini". A História do Brasil estava sendo afastada de seu povo, reservando-a para ser desfrutada por poucos, longe da multidão. Não diferente dessa festa dos 500 anos.
Isso não foi apenas um gesto prático, mas também simbólico. Ao longo da ditadura, o governo militar se apoderou dos símbolos nacionais e os colocou a seu favor. O hino, a bandeira, as cores e até a capital eram sua propriedade. Um vago ressentimento com isso pode - especulo - ser sentido até hoje quando tantos brasileiros não sabem cantar seu hino até o fim.
O povo deu uma simbólica volta por cima algum tempo depois ao tomar uma bandeira gigante do Brasil e proteger-se da chuva que começava a cair sobre a capital. Criou-se ali uma síntese do que viria pela frente (eram tempos de otimismo, gente): os símbolos nacionais voltavam para as mãos do povo. De repente era "moda" de novo ser patriota. Duvidam? Lembram da música "Verde e amarelo" do Roberto Carlos?
Quando se aproximam os 500 anos do país, em especial a data de aniversário, o que vemos? A celebração ser dominada por um tom oficialista chapa-branca que começa semanas antes, com a destruição de uma alegoria de índios lotados próximo da festa. E cresce assustadoramente parecido com o estado de sítio em Brasília às vesperas da votação da emenda Dante de Oliveira.
Será que as velinhas do país merecem ser apagadas por apenas uns poucos cercados de centenas de policiais? Do que eles têm medo? De olhar em volta e perceber que não apenas há motivo para comemorar o aniversário, mas também para pedir novos "presentes"? Medo de quem não enxerga o mundo como eles, logo não merece ser convidado? Medo do povo que o elegeu?
Não tenho nada contra espaços diferentes em uma festa. Veja o Reveillon em Copacabana. FHC & Cia estavam no forte, fechadinhos. Todo mundo estava na praia. Mas ainda assim era possível a ambos sentirem-se compartilhando algo. Ou na Rio 92, onde havia o grande fórum para os graúdos e um montão de espaços para as pessoas normais, ONGs, professores pardais e demais curiosos expressarem seus pontos de vista. Ainda assim o espaço e o momento eram partilhados.
A mentalidade de colégio eleitoral que pautou a celebração oficial dos 500 anos tem cheiro de ditadura, pois seqüestra para o governo a festa e o símbolo. Vira as costas para o povo, deixando a massa sem espaço para festejar (algum irônico ainda pode perguntar "festejar o quê, cara pálida?"). Mesmo turistas tiveram galhos para chegar na festa oficial, depois de tantas barreiras.
A situação é preocupante. Ou talvez não. Talvez esse episódio seja apenas emblemático de como o governo federal se relaciona com a sociedade brasileira. Nada mais sincero que revelar um personagem através de suas ações ao invés de suas palavras, dizem os livros de roteiro. É melhor estar de olhos abertos, sabendo com quem estamos lidando. Gostaria de acreditar que isso não passa de um grande engano, um engano de monumentais proporções. Mas não sei não. Acho que a velhinha de Taubaté não precisa de companhia.
Roberto Tietzmann
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