A Copa de 70 e a raça Selecionada

 

Claudio Dienstmann

 

Antes de 1970 o time nacional de futebol do Brasil era o escrete, de "scratch", "escrete de ouro", "escrete canarinho". Parece que os caras que criaram o neologismo não conheciam inglês, pois "scratch" na verdade significa "equipe formada às pressas". Mas deixa que aí o Brasil ganha o tri e a Taça Jules Rimet em definitivo no México, e desandou geral: virou a Seleção, assim, com S maiúsculo. Os jogadores da Seleção, especialmente do ponto de vista da mídia, passaram a ser os eleitos da raça, os melhores espécimes, o glorioso resultado de uma depuração (a Jules Rimet, coitada, foi roubada, derretida, adiós). Seleção é o filé, com direito a tal. O resto é periferia, com direito de aplaudir.

Nas eliminatórias para o México, em 69, ainda se falava só nas "Feras do Saldanha". Mas o general-presidente de plantão, Garrastazu Médici, queria mandar no time, e o João-Sem-Medo-Saldanha sugeriu ao general que escalasse o ministério, isso sim. Puxaram o tapete do João, que afinal só viu a Copa de 70 - como jornalista, outra vez - entrando clandestino no México, via Guatemala. Médici, que aparecia nos estádios com um radinho de pilha no ouvido, conseguiu impor a convocação do atacante Dario Peito-de-Aço. E o Brasil foi tri, em 70, sem o João, e com Médici tirando foto com o time no Palácio do Planalto.

Na Alemanha o time nacional é "mannschaft", grupo. Na Inglaterra é "team", e na Itália "squadra". A Espanha é a "Fúria", a Holanda "Laranja", o Uruguai a "Celeste", a França "Leus Bleus" (os azuis). Quase todos os selecionados (êpa) nacionais do mundo carregam apenas o nome do país, da Argentina ao Tajquistão, passando por Butão e Sri Lanka. Mas no Brasil uma pessoa passa a ser "Seleção" pelo único talento de bater bonito numa bola.

Aqui futebol não é apenas o ópio do povo: é também o feijão e o arroz, o aluguel, luz e água. E virou indústria total. Emprega cada vez mais gente, inclusive na mídia. As emissoras de rádio de Porto Alegre têm 30 horas de programação esportiva em dias sem jogos. Em dias de jogos, dá 50 horas. Nada anuncia e vende melhor do que futebol. Alguns caras compram espaço na TV, terceirizam, e saem a picaretear patrocínio. Depois, coagem os ídolos do futebol para participarem dos seus programas (quase todos repetitivos, um pé). O ídolo tem duas opções: 1) vai ao programa, e é usado para fazer merchandasing dos patrocinadores - garrafa de vinho à esquerda, bola à direita, pacote de massa na frente; 2) não vai, e leva um pau. O capitão Dunga não foi uma vez e só por isso continua levando pau até hoje. Não basta ser da Seleção: precisa também estar sempre disponível, inclusive para a Caras. E melhor se gostar de falar, mesmo sem dizer coisa com coisa. É o tal preenchimento de espaços. E viva a Seleção.

Spielberg diz que "futebol bem jogado é o mais belo espetáculo de imagens do mundo". Almodóvar garante que "nada é mais gentil do que um jogo de futebol". Mas há controvérsias: o escritor e técnico de futebol inglês Peter Shankly, por exemplo, afirmou que "futebol não é uma questão de vida ou morte: é mais do que isso", enquanto George Orwell constatou que "o futebol é uma mímica da guerra" (tendo feito essa constatação na guerra). Joseph Goebbels, marqueteiro e assassino, descobriu - e confessou - que, para fazer o povo esquecer a fome ou os seus mortos na guerra, uma vitória no futebol podia ser melhor do que a tomada e destruição de uma cidade inimiga.

Albert Camus, em seus tempos de escritor, piloto e goleiro, já dizia que "o conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol". José Luís Chilavert, goleiro do Paraguai e pretendente à presidência do país, afirma que o futebol é a única diversão da América latina". Eduardo Galeano, escritor uruguaio, constata com tristeza os efeitos negativos da profissionalização sobre o esporte: ele diz que é um cativo dos bons jogos (sem se importar se os bons jogadores estão no outro time), mas verifica que "a história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever".

Há 7.500 anos um pintor de cavernas desenhou numa parede a figura de um homem chutando uma cabeça cortada de outro, e esta é a primeira imagem de um jogo de alguma coisa chutada com os pés. Há 4 mil anos, chineses e japoneses brincavam com pequenas bolas de couro recheadas com fibra de bambu ou crina de cavalo. Gregos, persas, indíanos, árabes, sarracenos, romanos, saxões, normandos, bretões, astecas, maias - todo mundo bateu uma bolinha nestes últimos milênios. Os italianos criaram o "giuoco calcio" como forma criativa de substituir uma guerra por uma pelada. Na França e Inglaterra, muita perna foi quebrada e muita cabeça rachada enquanto massas furiosas de duas cidades rivais corriam atrás de uma pelota, através de rios, vales, florestas e prados, tentando levá-la até a porta de entrada do inimigo. Os reis consideravam aquilo uma barbaridade (não sem razão), mas foi afinal na Inglaterra que os alunos das melhores escolas resolveram acabar com a esculhambação e a grossura, e na metade do século 19 enfim criaram regras civilizadas para o "football", o jogo da bola com os pés, o "sport bretão", que logo se espalhou pelo mundo. Espalhou, logo chegou também ao povão, e em seguida deixou de ser esporte só de riquinho, virou profissional. Tudo bem. Mas aí o Brasil foi tri em 70, o "scratch" foi transformado em Seleção, e blá bla blá.

No início deste ano, o cracão inglês Beckham estava no Rio de Janeiro com o Manchester United, olhando algumas bundas em Copacabana, quando chegou um garotinho, que começou a fazer balõezinhos com uma laranja, e só parou quando enjoou: Beckham, com a boca aberta, pegou a laranja mas não deu mais de três (balõezinhos, pô). Pois é. Mas essa história de "Seleção" estraga todo o encanto, porque o negócio virou só negócio. Pretender que o Júnior Baiano, o Antônio Carlos e outros cabecinhas raspadas sejam os selecionados da raça já é - com todo respeito - tentativa subliminar de lavagem cerebral.