Parece que a queima do reles relógio, uma criancice estratégica que deu à Relojoaria Brasil-Sul o pretexto perfeito para ranger seus dentes hidrófobos cobrando uma posição (de quatro, provavelmente) do governo em defesa do Estado de Direita , ops, de Direito, teve o dom de iludir interpretações de ambos os lados do campo de batalha ideológico que Porto Alegre se torna cada vez mais.
A mídia hegemônica, falando em nome de todos os sec-otários contra o PT e tudo que a ele remotamente remeta, entrevistou algumas famílias padrão do imaginário classe mérdia desta Porto Alegre que tanto se orgulha de si mesmo. Gente gordinha, bem nutrida, com aquele olhar vazio de despachante posando pras câmeras como cordeirinhos ameaçados por aquela horda de bárbaros - bastante apropriado, já que bárbaro é literalmente o outro, o diferente, e a classe média-com-pão-e-manteiga porto-alegrense tem horror do que não se parece consigo própria, com seus apartamentos bem montados e bares da moda. "Famílias que queriam tirar uma foto com o relógio tiveram seu divertimento perturbado" ou algo parecido foi a frase utilizada pelo editorial da Zero Hora - não sei quem escreve aquilo, mas devem ser uns velhinhos desdentados com saudade dos bons tempos do tio Médici. Os cidadãos, em sua folga merecida, foram perturbados por levas de "baderneiros" (ah, como o Diário Gaúcho é eloqüente. Nestes tempos em que o trash, o subproduto vulgar e a porcaria escandalosa parecem ter se tornado o parâmetro, numa curiosa inversão estética e - principalmente - ética, prevejo vida longa para o carnavalesco novo produto da RBS).
Outros justificavam a queima com o argumento de que foram vários os protestos pelo país, e que as estátuas de Lenin e Stalin derrubadas em Moscou ou Berlim não foram tratadas como "vandalismo pela mesma RBS - que pouco tempo atrás falou muito sobre os dez anos de queda do Muro de Berlim, outro vandalismo historicamente correto. Estão certos, mas usam o argumento certo para defender o ponto errado.
Quem destruiu aquele relógio não foram os índios (Fomos bastante eficientes em aniquilar os nossos) e provavelmente havia pouca gente do assim chamado "povo" (alguém precisa arranjar uma palavra nova pra isso. Povo, no sentido amplo, queiramos nós ou não, até os Sirotsky são), porque o pessoal-que-se-costuma-chamar-de-povo talvez nem estivesse lá. Quem queimou aquela aviltante fantasia demente provavelmente não foi o assalariado, o desempregado ou a doméstica, gente que REALMENTE tem sofrido sob o jugo desses últimos anos em que o magnífico eleitorado brasileiro tem votado em qualquer um para não votar no Lula. Infelizmente, esses não queimariam um relógio da Globo JUSTAMENTE porque o relógio era da Globo. Esses compram cedês do Terrasamba, assistem ao show do Ratinho e colecionam o Diário Gaúcho para ganhar um conjunto de panelas que poderiam comprar pelos mesmos 15 pilas em algum lugar por aí, mas acham que vão gastar menos comprando o jornal por 60 dias.
Esse lance de protesto, um dos mais evocados argumentos dos irascíveis revolucionários de qualquer espécie que nos últimos tempos têm saído em defesa do gesto - mesmo o Olívio saiu com essa - também faz parte da impossibilidade do discurso de explicar satisfatoriamente uma ação fora de controle. Foi raiva mal direcionada - porque a raiva não é construtora, ela simplesmente brota, aflora, e invade a realidade sem que dela se possa tirar proveito nenhum. A sociedade tem raiva. O trabalhador desempregado tem raiva e o autônomo classe média com medo de perder seu emprego e seu apartamento na Bela Vista também tem raiva, e o empresário sanguessuga, deixado de lado para que as tetas em que antes mamava agora sejam entregues a empresários estrangeiros tem raiva. Um dia ela vai eclodir, e nada de bom virá dela. Talvez venha depois dela, depois que o fogo, a destruição e a turba tiverem feito terra arrasada, haja terreno para algo novo surgir, algo melhor ou mais torpe, a chance é a mesma.
Pouca gente parece ter escrito com alguma propriedade sobre o tema (pelo menos para o meu gosto - admito), mas os que o fizeram lembraram de uma coisa em que ninguém se ligou quando aquela excrescência foi colocada no Gasômetro. A Prefeitura deixou. A prefeitura de três mandatos petistas, mesmo partido que agora está no governo de um estado francamente "oposicionista" se encolheu e permitiu que aquilo lá fosse colocado em nossa paisagem, com o Cachorrão na solenidade e tudo o mais. Não sei no que vai dar todo esse rolo do relógio, mas uma cabeça que eu pediria seria a do Pont, por ter deixado essa merda se instalar por lá.
Em tempo: tratou-se a queima como a destruição
de um monumento histórico, o que é uma falácia. Era
publicidade de mau gosto. Agora, que sobrou apenas a estrutura de ferro
retorcido, acho que agora sim aquilo lá deve ficar como está,
porque agora finalmente virou um marco histórico. É só
botar uma plaquinha: "lembrança da batalha campal dos 500 anos".
Leonidas Greco