E já que o assunto é este...
por Giba Assis Brasil 07/06/2000 19:24
(Mas começa antes, com um "item enviado" em 4 May 2000 05:42:04.
E daí vai ainda mais pra trás.
A pesquisa eu fiz no dia seguinte, quando o assunto ainda rendia.
Depois achei que não valia a pena. Não mandei pro Caon.
Aí saiu o Não 71, com a gurizada tomando conta e a gente de fora, espiando.
Mas agora o Jorge retomou o tema, e eu resolvi interferir.
Até porque, como diria o Juarez, "antes tarde do que mal acompanhado")



Para: Paulo César Teixeira 04/05/2000
Reloginho no Não ao vivo

Até nisso o Não sempre esteve à frente do seu tempo.

Texto de Paulo César Teixeira em algum Não qualquer de 1978 (ou quem sabe 1977?, é muito tarde, não vou agora pegar uma cadeira na cozinha, subir no último andar da estante aqui do lado e procurar a velha coleção de Nãos, mas acho que estou ficando velho, até algum tempo atrás era exatamente isso que eu faria.)

Mas o texto terminava assim (disso eu tenho certeza):

"É mais importante dar um tiro no relógio da praça 15 do que no general João Batista Figueiredo."

Lembro porque eu usei essa frase, chupada mesmo, copiada literalmente, mas pelo menos como citação, ainda que ninguém tenha entendido, num roteiro que eu escrevi pro Quizumba, interpretado pelo Grupo Vende-se Sonhos, isso lá por 1981 ou 82, a frase na época já me parecia antiga, e será que era?

Era um esquetezinho sobre um grupo de caras que morava em comunidade (foi filmado aqui mesmo, nesta sala onde hoje eu estou escrevendo, baixinho pra não acordar a minha filha, que hoje cedeu sua cama pra um primo) e tinha um amigo chato que aparecia sempre altas horas da noite e queria conversar, beber, jogar War, discutir cinema. Os outros todos morrendo de sono, tinham que estudar ou trabalhar na manhã seguinte, e o cara (interpretado pelo Marco Sorio) nada de ir embora. No fim o cara era apresentado como o verdadeiro revolucionário, o cara que subvertia o tempo. E tinha requintes metalingüísticos: a Xala fazia uma repórter que entrava no meio da ficção, em primeiro plano, com um microfone na mão, e comentava pra cãmara a situação ao fundo. No final ela dizia: "Como já disse Paulo César Teixeira, é mais importante dar um tiro, etc. etc, etc."

Juro que eu fiz isso. Foi ao ar na TVE. Ninguém viu. Mas eu tenho o roteiro em algum lugar, no penúltimo ou antepenúltimo andar da estante. Outro dia eu procuro.


(sem título, foguinho, não 33, setembro/78)

na comuna de paris, os operários, antes de atirarem nas pessoas da rua, atiravam nos relógios das praças, igreja, edifícios.

não perder o fôlego. indefinidamente. ainda esses dias, eu li o texto que o maumau escreveu pro dois pontos número 3, em que ele dizia assim: "Viver mais intensamente cada emoção, sem ser atropelado por elas." atente bem para isso: toda beleza aparente é muito mais que nada disso. no ritmo. não perder o fôlego. toda a transa resulta naquele dado antigo e sempre forte e sempre burro: o paternalismo de se olhar pra trás pra frente pro lado pra cima pra baixo com olhar terno (des) compromissado.

não perder o fôlego, ad infinitum. agora entrar amanhã sair e não perder o fôlego. me recuso a ficar só. o medo de falar de alguma coisa que de repente escapa. ai, fernando, não me enche o saco. tudo mudou, não me iludo e agora contudo me frago. não perca o fôlego. falar de alguma coisa sem se perder, sem perder de vista alguma coisa, não parar.

uma vez eu tava puto da cara com os amigos julianos porque eles não toparam distribuir uma nota lá no colégio, então eu disse assim: pô, esses caras são uns progressistas de galocha. depois o alberto fez um filme, maria das dores, em que ele botava no final: e viva os progressistas de galocha! o grilo é esse: se tem na cabeça muitas idéias e conclusões e mesmo formas de organizações, mas na hora em que a barra tá viva todo mundo fica perdido. a nesa tava conversando com o sergio e eu, apesar de tá distraído, ouvi que ela dizia que foi na holanda que ela sentiu a barra real do racismo, que antes ela sabia: o racismo é uma coisa feia, desde sempre sabemos que o racismo é ruim, mas no mais das vezes ninguém consegue deixar de tapar o nariz quando pinta um crioulo suado num ônibus. então é preciso criar formas próprias de trabalhar com as coisas, com o racismo por exemplo. foi  na holanda que a nesa transou com caras de outras raças e foi lá que ela aprendeu a jogar com eles.

não sei o que isso tem a ver com o que eu tava escrevendo, mas faz parte de um texto sobre maria das dores que eu tinha feito e depois resolvi mandar à puta que o pariu.

não perder o fôlego, nunca. fazer alguma coisa sem se perder, sem perder de vista alguma coisa, não parar.

é muito mais importante dar um tiro no relógio da praça quinze do que no general joão batista figueiredo.


JUAREZ DEPOIS DA MEIA-NOITE

roteiro de Giba Assis Brasil para o quadro
O GRUPO VENDE-SE SONHOS APRESENTA
exibido no programa QUIZUMBA, TVE, 10 de julho de 1982

Direção coletiva do Grupo Vende-se Sonhos
com (por ordem de entrada em cena):
Shala Felippi (Narrador)
Cleide Fayad (Magda)
Marco Sorio (Juarez)
Marta Biavaschi (Miriam)
Angel Palomero (Raul)
Deborah Lacerda (Carioca)
Sérgio Peti (Beto)
 

(1) RUA, FRENTE DO EDIFÍCIO, NOITE.

Narrador de microfone na mão, olhando pra câmara.

NARRADOR
O Grupo Vende-se Sonhos hoje vai contar o drama de Juarez, um cara que não tinha um amigo que ele pudesse visitar depois da meia-noite.
Narrador percebe que alguém vem vindo, se desculpa e se esconde atrás da câmara. Juarez entra em quadro, não percebe a câmara, apita no porteiro eletrônico.

(2) QUARTO DE MAGDA, NOITE.

Magda dormindo. Acorda com o barulho do porteiro eletrônico. Fica puta da cara.  Não levanta. De novo o barulho. Levanta de má vontade, morrendo de frio, reclamando.

MAGDA
Vai ver foi o idiota do Raul que esqueceu a chave de novo. E a Miriam não acorda.
Sai de quadro.

(3) COZINHA, NOITE.

Magda atendendo o porteiro eletrônico, com sono, olhos ofuscados pela luz, vestindo um casaco por cima do pijama.

 MAGDA
 Sim? Quem é?
(4) CONTINUAÇÃO DE (1).
JUAREZ
A Miriam tá aí?
(5) CONTINUAÇÃO DE (3).
MAGDA
Não. Quer dizer, tá, mas tá dormindo.
(6) CONTINUAÇÃO DE (1).

Juarez hesita um pouco, mas insiste.

JUAREZ
Eu... posso subir, Magda? É o Juarez.
(7) CONTINUAÇÃO DE (3).
MAGDA
(aceitando a situação) É, já vi... Tudo bem.
Magda aperta o botãozinho que abre a porta.
MAGDA
Deu?
(8) PORTA DE ENTRADA DO APARTAMENTO, NOITE.

Vista pelo lado de dentro. Magda tá de costas, abrindo a porta com cuidado pra não acordar os vizinhos, falando baixo pra não acordar os de casa. Juarez tá contente.

JUAREZ
Ôi.

MAGDA
Psst, vamos aqui pra cozinha, cara.

JUAREZ
(contrariado) Não, vamos pra sala.

MAGDA
Que sala, cara? Aqui em casa só tem sala de dia. De noite é o quarto do Beto.

JUAREZ
(contente de novo) Ah, o Beto tá morando aqui com vocês, é? Que legal, faz horas que eu não falo com ele.

Juarez vai indo em direção à sala. Magda corta a passagem dele.
MAGDA
Psst, ele tá dormindo, Juarez. (insistindo, mas achando a situação engraçada) Pô, o que é que tu pensa, é mais de uma hora da manhã, o Beto tem que trabalhar de manhã cedo. E depois tem uma carioca amiga dele que também tá dormindo ali na sala, num colchonete.

JUAREZ
(decepcionado) Ela também tem que acordar cedo?

MAGDA
Claro, cara. E eu também, né? Eu tou desempregada mas tenho que assistir aula amanhã, senão eu perco a minha bolsa.

Juarez pensa um pouco, tem uma idéia.
JUAREZ
Mas a Miriam, não, né? A Miriam foi despedidda do emprego e largou a faculdade, não tem nada pra fazer de manhã. Eu vou acordar ela.
Juarez passa antes que Magda possa impedir.
MAGDA
(depois que ele passou) Ó, eu se fosse tu não entrava no quarto dela...
(9) QUARTO DE MIRIAM, ESCURO, NOITE.

A câmara entra junto com Juarez no quarto. Acende a luz. No colchão, deitados, abraçados, debaixo das cobertas, Miriam e Raul. Os dois acordam, ofuscados pela luz.

JUAREZ
(off ou de costas) Miriam, adivinha quem é que veio...
Só então Juarez percebe a preesença de Raul. Fica sem jeito.
JUAREZ
Ah, desculpe.
A câmara fica na cara dos dois, acordando, sem entender direito - não mostra Juarez de frente.

(10) SALA/QUARTO, MESA DO CAFÉ, NOITE.

Narrador em primeiro plano, microfone na mão, falando pra câmara. Ao fundo, Miriam, Raul e a Carioca.

NARRADOR
Na manhã seguinte, o pessoal da casa toma café e fala sobre o visitante notunrno.
Narrador sai da frente da câmara, que abre e mostra a mesa e o pessoal, todo mundo com cara de sono, tomando café.
CARIOCA
(pra Miriam) Xcuta, quem era aquele garoto que invadiu o seu quahto de madrugada? Que cosa max maluca, meu deux!

MIRIAM
Ah, aquele é o Juarez, um amigo nosso.

Miriam olha pra Raul, os dois riem baixo, lembrando a cena.
CARIOCA
Juareix... Gracinha de nome.
Beto, o que tá com mais cara de sono de todos, não entende nada.
BETO
O quê? O Juarez teve aqui essa noite? Como é que eu não vi?

RAUL
(gozando) Também, né, tu dorme mais que o Leandro na defesa do Brasil.

Beto, ainda com sono, ri amarelo da piada infame.
BETO
E o que é que ele queria, hein?

MIRIAM
Sei lá, queria conversa, assunto. Provavelmente tava sozinho em casa, não tinha nada pra fazer e resolveu fazer visita. Tudo bem, né, mas numa segunda-feira, a uma e pouco da manhã...

CARIOCA
Ah, eu achei uma graça.

RAUL
(dando indireta) É, pra quem passa a vida inteira viajando, não tem o que fazer de manhã...

MAGDA
(cortando) Ó, eu tou achando muito careta esse papo de vocês. Eu achei um barato a visita dele. A gente aqui em casa é que tá entrando numas de rotina, de fazer sempre as mesmas coisas no mesmo horário.

MIRIAM
É a luta, Magda.

MAGDA
É, é a luta, sim. Mas é legal a gente sair dessa de vez em quando. O Juarez é um cara legal. Só que ele anda muito baixo astral. Acho que ele tá precisando sair da casa dos velhos dele.

RAUL
Eu acho que ele tá precisando é de um emprego.

BETO
Não. (olha pra Magda) Eu acho que ele tá precisando... (faz um sinal discreto de punheta) é de uma namorada.

Todos olham pra Magda, que não diz nada e volta a tomar café.

(11) RUA, FRENTE DO EDIFÍCIO, NOITE.

NARRADOR
(Pra câmara, como sempre) Como diz o Paulo César Teixeira, "É mais importante dar um tiro no relógio da praça quinze do que no general João Batista Figueiredo."
Narrador sai da frente da câmara. No fundo, Juarez, com o figurino ligeiramente modificado e uma enorme caixa de War embaixo do braço.
JUAREZ
Ôi. É o Juarez. O que vocês vão fazer hoje de noite?
(12) SALA/QUARTO, NOITE.

Tabuelrio de War na mesa, com quase todo o planeta (de cabeça pra baixo) dominado por peças pretas, e umas poucas peças brancas num cantinho do tabuleiro.

Câmara sobe e mostra Juarez e Raul. Juarez está contente, do lado quase vencedor. Raul preocupado, pensando, do outro lado. Miriam encostado no ombro del, dormindo. Câmara passeia. Magda acompanhando, interessada. Beto dormindo, atirado. Carioca ainda olhando, mas com sono. Juarez e Raul vão jogando dados. Raul perde. Fica puto da cara, mas ainda disfraça.

RAUL
Putz, mas tu tá com muita sorte hoje.

JUAREZ
Tu sabe que eu acho que eu nunca perdi jogando com as pretas? (vai recolhendo as peças, botando dentro das caixinhas) Incrível, né?

CARIOCA
(acordando) Tem um garoto lá no Hio, o Mahquinhox, que é gênio nesse jogo. Queria ver cê ganhar dele.

MAGDA
(levantando) Aí, pessoal, quem tá a fim dum chá?

RAUL
(como que se dando conta que é tarde) Que chá, coisa nenhuma. Eu vou é dormir, que já são quase três horas e eu tenho um monte de coisa pra fazer de manhã.

Raul se levanta abruptamente, fazendo Miriam quase cair e acordar reclamando.
JUAREZ
(falando mais pra Magda que pro resto, um pouco inseguro) Pessoal, será que eu posso... dormir aqui essa noite?
Raul e Miriam se olham, Beto acorda e espia.
JUAREZ
É só essa noite, eu durmo no tapete, não tem problema, só preciso dum cobertor emprestado.

MAGDA
(se adiantando) Por mim não tem problema.

RAUL
Tudo bem, cara. Mas só por curiosidade: o teu irmaõ não mora a uma quadra daqui?

(13) SALA/QUARTO, NOITE.

Narrador em primeiro plano, pessoal sentado ao fundo (menos a Magda).

NARRADOR
Bom, pra encurtar a história, o Juarez dorme lá aquela noite. Mas de manhã, quando todo mundo levanta e vai à luta, ele também cai. Na noite seguinte, os moradores tão reunidos na sala, conversando sobre política internacional.
Narrador sai da frente.
BETO
Assim, ó: imagina que tem um cara morando numa casa. Há muito tempo. Muito tempo mesmo. Aí tu descobre que tem um livro que diz que tu é o dono daquela casa, e não o cara que mora lá. Aí tu vai lá, enche o cara de porrada e expulsa o cara da casa. E o cara vai morar nos fundos da casa do vizinho. Até aí tudo bem. Mas um tempo depois tu chega à conclusão que tão fazendo muito barulho na casa do vizinho. Entra na casa do vizinho, encontra o cara lá nos fundos, diz que é ele que tá fazendo barulho e enche ele de porrada de novo. É isso.

CARIOCA
Que barato!

Silêncio. Todos parecem esperar alguma coisa. De repente, toca o porteiro eletrônico. Os quatro se levantam ao mesmo tempo pra abrir.
RAUL
Deixa que eu abro.
Raul sai. Os outros três voltam a sentar, na expectativa, enquanto Raul - fora de quadro - vai até a cozinha, atende o porteiro eletrônico e volta, meio decepcionado.
RAUL
É a Magda. Perdeu a chave.
Decepção geral, mas meio disfarçada. Um tempinho de silêncio. Carioca fala com Beto, apontando o som, fora de quadro.
CARIOCA
Cê não quer pôr um dixco?
Beto, com preguiça de se levantar, sai de quadro, mas não se ouve música nenhuma. Magda entra.
MAGDA
Ôi. (estranhando o baixo astral geral) Ué, o quê que houve?

MIRIAM
Que horas são, hein?

MAGDA
Meia-noite e quinze. Por quê?

Miriam se levanta, veste o casado. Raul olha pra ela, sem entender.
MIRIAM
Eu vou dar uma chegada na casa da Neca.
Miriam caminha em direção à porta, mas, antes de sair de quadro, como que congela o movimento, o mesmo acontecendo com todos os personagens.

(14) SALA/QUARTO, PLANO MÉDIO

Narrador ao lado da Miriam, congelada. Narrador apresenta Miriam pra câmara.

NARRADOR
Essa é a Miriam, 21 anos, ex-estudante de letras e ex-professora de inglês num cursinho. Tempo ocioso atualmente: total. Não recebe mesada. Por enquanto, vive de poupança. Peixes, com ascendente em Touro. (apontando) Ele ali, agora.
Narrador caminha pro lado apontado, câmara o segue, fixa Raul, também congelado.
NARRADOR
Raul, 25 anos, formado em engenharia civil, trabalha em dois turnos como programador numa firma de computadores. Já transou movimento estudantil. O namoro com a Miriam começou há pouco tempo, e não tá legal. Também, ele é Libra. Inferno astral.
Narrador aponta Beto, congelado, mexendo nos discos.
NARRADOR
Beto, 22 anos, jornalista formado, trabalha de manhã em duas rádios da mesma empresa, e recebe só um salaário. Como não consegue deitar cedo, passa as tardes dormindo, e fica com sono o dia inteiro. Signo: Trotskista, primeiro decanato.
Narrador aponta a Carioca.
NARRADOR
Carioca, ninguém na casa sabe o nome dela. 18 anos, nunca trabalhou, vive de mesada, já rodou em dois vestibulares pra odontologia. O pai é dentista e não sabe que ela tá em Porto Alegre. Tempo ocioso: total. Fã do Caetano Veloso, como todo mundo.
Narrador aponta Magda.
NARRADOR
Magda, 24 anos, formada em sociologia e agora fazendo pós-graduação. Ex-bancária, foi pra rua sem justa causa, desempregada há sete meses e desesperada há trtês. Signo: Aguário, mas não acredita em horóscopo. Aliás, isso é típico de Aquário.
Câmara fecha no narrador, que agora fala mais pausadamente, direto pra câmara.
NARRADOR
Nenhum deles tem um amigo que possa visitar depois da meia-noite. Grupo Vende-se Sonhos, para o Quizumba.


pelas transcrições: Giba Assis Brasil

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