Ainda sobre destruir relógios
por Jorge Furtado 07/06/2000 19:01

Recebi o seguinte e-mail:
 
Prezado Jorge Furtado,

Sugiro que seja publicada na edição 72 do NÃO a carta que o cartunista Santiago (Neltair Abreu) enviou aos veículos da RBS, solicitando publicação. Adivinhe se ele conseguiu... Diante da negativa da empresa em divulgá-lo, o texto, reproduzido abaixo, foi lido no plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre, na sessão de hoje (06/06), pelo vereador Juarez Pinheiro, sendo enviada para as redações em um release. Santiago disse tudo. Veja que maravilha.

Um abraço,

Leonardo Schneider - jornalista

(segue o texto do Santiago) 
 
 
Porto Alegre, 29 de maio de 2000.

Senhor Editor:

A juventude não seria juventude se não protestasse na data dos 500 anos, se houve exagero ou não são outros quinhentos. Mas exagero maior está sendo a choradeira que fazem os comunicadores em torno da destruição do relógio:
1 - A Rede Globo, a verdadeira proprietária, não reclamou uma vírgula sobre o assunto.
2 - O relógio não passa de equipamento de propaganda de uma empresa privada e feito de tecido plástico perecível, portanto chamá-lo de "monumento" é de um exagero atroz. Querer que o Estado proteja anúncios de empresas privadas é como exigir que policiais pagos com o nosso dinheiro montem guarda nos out-doors da Coca-Cola, por exemplo. Vale lembrar que miniaturas do tal relógio estavam sendo comercializadas pelo autor, que nem brasileiro é. Eu nunca tinha visto monumento feito com fins lucrativos.
3 - Os comunicadores que agora vociferam são os mesmos que acharam uma maravilha quando a juventude derrubou as estátuas do Lenin no leste europeu. Por que derrubar símbolos de dominação lá é nobre e aqui é crime?
4 - O relógio foi destruído em quase todas as capitais, inclusive cravejado de flechas pelos índios, e não houve choradeiras. Seria porque nas outras capitais não havia governos que são contra o neoliberalismo e aí não interessa tirar proveito político?
5 - Pessoas fora dos seus locais de serviço não podem ter suas indignações e protestar contra o que lhes der na telha?

Neltair Abreu - jornalista
Identidade 50034223786

Fiz o possível para não entrar neste assunto, não pensei que fosse render tanto. Me enganei. As imagens da destruição do relógio estão na televisão, num comercial do PPB. E as cartas e comentários continuam, já falaram até em CPI do relógio, imaginem. Aproveito a carta do Santiago, um grande artista e um cara por quem eu tenho o maior respeito e admiração, para meter meu bedelho. Por partes.

"A juventude não seria juventude se não protestasse na data dos 500 anos".

Perfeito. O papel das hordas juvenis é este mesmo, extravasar seu descontentamento no que estiver no caminho. Melhor ainda se o que estiver no caminho for um símbolo do pensamento dominante, um relógio da rede Globo, um out-door da Coca-Cola, ou a careca do José Serra.

"...exagero maior está sendo a choradeira que fazem os comunicadores em torno da destruição do relógio".

Sem dúvida. A choradeira é puro jogo de cena, claro. Evoca-se a segurança pública, o respeito à ordem e ao patrimônio tentando vender a idéia de que um governo popular acaba necessariamente em barbárie. 

"A Rede Globo, a verdadeira proprietária, não reclamou uma vírgula sobre o assunto."

Bem lembrado. Aliás, que utilidade tem um relógio que marca uma contagem regressiva depois que chega o momento zero? Imagino que, não fosse dramaticamente destruído, o relógio teria sido melancolicamente desmontado.

"O relógio não passa de equipamento de propaganda de uma empresa privada e feito de tecido plástico perecível, portanto chamá-lo de "monumento" é de um exagero atroz."

E não dos piores. Um dia destes José Barrionuevo produziu uma manchete antológica: "aumenta o analfabetismo na capital". A conclusão vinha do aumento (de 13.060 para 13.130) de eleitores analfabetos registrados no TRE. A tentação da manchete impediu que o jornalista parasse um segundo para pensar que eleitor analfabeto vota se quiser, que o aumento é um bom sinal, reflete a politização crescente na cidade e não tem nada a ver com o número total de analfabetos existentes. Cheguei a começar um texto para o Não ("analfabetismo aumenta na página dez de zero hora") mas não deu tempo de publicar: o próprio jornalista corrigiu seu erro, em nota de bem menos destaque, no dia seguinte. Quem não viu, espere a campanha eleitoral. Querem apostar que esta manchete vai parar na televisão?

"Querer que o Estado proteja anúncios de empresas privadas é como exigir que policiais pagos com o nosso dinheiro montem guarda nos out-doors da Coca-Cola, por exemplo".

Bem, aqui infelizmente eu tenho que discordar do Santiago. Acho abominável a profusão de anúncios publicitários nas ruas de Porto Alegre. Escrevi sobre isso na primeira edição do Não. A maioria dos anúncios na cidade não tem qualquer autorização, são clandestinos. A publicidade só tem sentido quando barateia algum serviço de interesse público. O que a cidade ganha com esta enxurrada de anúncios? Um caso especialmente revoltante é o da Estação Farrapos, que já foi uma bela imagem no ponto de fuga da avenida, hoje destruída por lixo publicitário. Mas... espera-se, sim, que o estado proteja a integridade dos anúncios. Espera-se mais: que o estado limite, regule e fiscalize a existência dos anúncios. Que remova os anúncios irregulares, o que não faz, parece que por falta de equipamentos, verba e pessoal. E que proteja os que tiverem existência legal, como era o caso do relógio. A rede Globo, conforme informou o prefeito Raul Pont na "inauguração" do relógio, pagou à prefeitura pelo espaço. Era de se esperar que o estado protegesse a sua integridade. Ou não? 

"Vale lembrar que miniaturas do tal relógio estavam sendo comercializadas pelo autor, que nem brasileiro é".

Aqui, o pior momento da carta. Que o relógio estivesse sendo comercializado na sua versão em miniatura é problema de quem vende e mau gosto de quem compra. Justificar sua destruição alegando que o autor não é brasileiro é um absurdo da pior espécie, xenofobia pura e simples. Hans Donner nasceu na Áustria. E aí? Xico Stockinger também. Isto serviria como argumento, como lembrou o Werner, para a destruição do Cristo Redentor no Rio, também obra de um estrangeiro. Ou da Estátua da Liberdade em Nova Iorque. 

"Os comunicadores que agora vociferam são os mesmos que acharam uma maravilha quando a juventude derrubou as estátuas do Lênin no leste europeu. Por que derrubar símbolos de dominação lá é nobre e aqui é crime?"

Destruir um relógio de plástico foi um compreensível arroubo juvenil. E uma bola nas costas do governo do PT, produzindo imagens de vandalismo que já estão sendo usadas pelos profetas do caos. (São os mesmos que, no poder, proibiram filmes, livros, peças e músicas, mas quem lembra?) Bem mais triste foi a destruição das estátuas de Lênin. A idéia de que destruir imagens e registros de um passado que se condena possa fazer um futuro melhor é, na melhor hipótese, pensamento mágico. E, na pior, pura idiotice. Foi o argumento usado por Rui Barbosa para mandar incinerar todos os arquivos sobre a escravidão no Brasil, um crime contra a história. Foi o argumento dos stalinistas que destruíram igrejas, também símbolos da dominação. E dos nazistas que queimaram livros e quadros "decadentes". Já deve ter gente na Rússia, atolada em guerras e corrupção, encomendando novas estátuas do Lênin.

"O relógio foi destruído em quase todas as capitais, inclusive cravejado de flechas pelos índios, e não houve choradeiras. Seria porque nas outras capitais não havia governos que são contra o neoliberalismo e aí não interessa tirar proveito político?"

Seria, claro. E também porque o protesto das flechas, em Brasília, foi muito mais inteligente e criativo. Destruir também é uma arte.

"Pessoas fora dos seus locais de serviço não podem ter suas indignações e protestar contra o que lhes der na telha?"

Podem, claro. Devem. O que não pode é a polícia, paga para defender a ordem pública e os cidadãos - todos, manifestantes, anunciantes e austríacos residentes - ficar olhando sem fazer nada. São Pedro nos defenda de uma polícia que aja por motivações políticas, decidindo o que pode e o que não pode ser depredado. Ninguém esperava que se usasse de violência contra os manifestantes, mas parece claro que a polícia tinha que tentar impedir a destruição do relógio. Ou pelo menos fingir com mais talento. Agora, se o caso é destruir símbolos de dominação em praça pública, sugiro o monumento a Júlio de Castilhos, na Praça da Matriz, uma bela homenagem ao positivismo mais tacanho. O escultor Décio Villares era brasileiro mas, olha aí, fez as estátuas na França. Levem picaretas que o troço é de pedra e ferro.

Comunistas destroem igrejas. Nazistas destroem livros. Idiotas destroem estátuas.


Jorge Furtado
 

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