[í n d i o q u e r a p i t o ? I I - a m i s s ã o] por Marcelo Träsel |
>> quem não sabe do que estou falando pode ler minha contribuição no não-70 << continuando minha cruzada pelo fim do tratamento dos índios como se eles fossem imbecis incapazes, vou comentar uma entrevista do líder indígena marcos terena, publicada na revista caros amigos 37, mês de abril deste ano. só pra dar uma amostra do que os índios podem nos ensinar. [[gostamos muito do brasil, amamos o brasil, valorizamos as coisas do brasil porque o adubo do brasil são os corpos dos nossos antepassados]] [[à noite, poder dormir no colo da avó, do avô, da mãe ou do pai e ficar ouvindo as histórias e poder olhar pro céu e sonhar com aquelas histórias. hoje, aqui na cidade, é muito raro a gente ver isso. é mais fácil pra mamãe e o papai alugar uma fita de vídeo e fazer a criança ficar assistindo ao vídeo até ela adormecer, então até nos sonhos a formação de vida é diferente. uma análise que faço, inclusive em relação aos meninos que mataram o galdino [pra quem não lembra, em brasília, os boyzinhos tacaram fogo no pataxó galdino pensando que fosse "apenas um mendigo"]: qual o tipo de educação que eles tiveram? porque eles tinham tudo pra dar certo, pais ricos, influentes, mas uma coisa que faltou, e é uma coisa que ainda sobrevive na cultura indígena, é saber encostar o coração da criança no próprio coração. não adianta presentes materiais, as crianças precisam sentir o coração do pai e da mãe. por isso, muitas vezes não entendem por que, quando tem um filho, a mulher vai pra cozinha e o homem vai pra rede aconchegar o filho, então alguém diz: "puxa vida, aquele índio é um preguiçoso, a mulher dele trabalhando e ele lá, abraçado, na rede". é um processo, quando aquela criança crescer também vai aprender a cuidar e proteger os mais novos, e quando virar pai ou mãe, vai fazer a mesma coisa. é um ciclo de vida. e gostaria de falar de uma outra parte deste ciclo, que é a questão dos velhos também, porque aprendi muita coisa com o meu avô. <...> meu avô dizia: "eu estou deixando de ser forte fisicamente, mas adquiri outras forças: a força espiritual e a força da sabedoria". todo mundo quer ser forte fisicamente, quer sempre estar bonito, então as mulheres fazem plástica, os mais velhos procuram tomar remédio... mas ele dizia: "isso não adianta, porque é o sistema de vida. o que você cultivou nesse tempo todo? a força espiritual".]] ok, quem precisa de psiquiatra, deste jeito? claro que não podemos ficar sentados na rede o dia todo abraçando nossos filhos. mas é tão raro ver um pai ou mãe dando um carinho espontâneo, abraçando o guri... a criança chega dizendo que ganhou nota máxima no colégio e o pai já promete uma viagem pra disney, quando tudo o que o guri queria é ser abraçado. é a mercantilização até mesmo das relações pai-filho. tempo é dinheiro. e dar carinho leva tempo. gostei especialmente da parte sobre o avô do marcos terena. a maneira de encarar o processo da vida. enquanto nós brancos buscamos a imortalidade a todo custo, por plásticas, transplantes, remédios e livros, obras gigantescas - o que são, senão maneiras de se tornar imortal? - os índios enxergam que tudo nasce, vive e morre. também, a importância de se aprender com os avós, por mais tacanhos que sejam. todas as vezes em que perguntei coisas ao meu avô, tive uma bela surpresa. mas ok, quem tem tempo pra escutar um velho falar sobre a essência de ser humano, né? isso, vamos mandá-los todos pros asilos. ou fazer sabão. ninguém precisa de sabedoria pra apertar botõezinhos numa montadora de veículos. [[essa política indigenista criou sistemas de coerção à liberdade indígena quando diz assim: o índio tem de ser protegido. o índio realmente precisava de proteção nessa relação com o branco, mas transformaram os índios em incapazes e surgiu a figura do tutor do índio, o governo federal, que anulou todo o potencial indígena. em nome dessa proteção, o índio não podia ir pra escola e foi criado um muro, e todo índio que se rebelava era castigado.]] essa é pra quem pensou que eu disse besteira na colaboração no não-70, quando denunciei a arrogância do homem branco em decidir o futuro dos índios em lugar dos próprios. não indo pra escola, os índios foram privados de universidades, de bons empregos, de conhecimentos básicos de higiene e medicina modernas, planejamento familiar. quer dizer, foram condenados à pobreza e ignorância eternas. de que o estado tem medo? talvez, de não poder mais explorar os recursos naturais em terras de índios ingênuos. [[na língua indígena, só há os número um, dois e três. se você caça quatro bichos, fala mais de três. então, são valores indígenas que foram desconsiderados no processo de contato.]] não haver números superiores a três na língua indígena denota um desapego material incrível. não havia a necessidade de acumular, logo não havia a necessidade de números maiores do que três. ninguém precisa pescar mais de três peixes por dia pra comer. esta parte da entrevista dá muito o que pensar sobre a nossa cultura da acumulação. [[por outro lado, o governo trabalhava com a política de integração do índio, a gente estava sendo preparado, eu passei por isso, pra ser um futuro não-índio. a minha cabeça realmente pensava assim: "eu vou ser o piloto de uma empresa aérea internacional, estou estudando inglês, francês, quero ter uma chácara em cotia, um apartamento no rio de janeiro". minha cabeça era assim. por quê? porque na minha cabeça tinha um chip que me conduzia desse jeito, só que o chip indígena não tinha morrido.]] temos chips que nos conduzem, chamados valores, a buscar o progresso, a acumulação, a riqueza material a todo o custo. mas pode ser diferente. temos tanta certeza de nossas metas que raramente analisamos estes valores. por isso eu digo que nietzsche deveria ser obrigatório no currículo escolar. [[os povos indígenas, todos eles, antes de encontrar o homem branco, eram ricos. o que significa rico pra nós? viver bem, viver com saúde, viver com dignidade, aquilo que falei da criança, tal, tal, tal e, quando encontramos o homem branco, ele neutralizou esses valores. como? pegou um espelho, que é o exemplo mais famoso, e deu pro índio e aí o índio falou: "puxa vida, a civilização do homem branco é boa, porque lá nós vamos ganhar tudo de graça". <...> na nossa vida anterior tínhamos tudo, não tinha fome, as doenças os pajés curavam com remédios sem efeito colateral. e hoje, infelizmente, estamos na camada mais pobre da sociedade nacional. o lucro também não existia, acumular bens, a gente não tinha a preocupação de poupar, mas de viver o dia-a-dia.]] dispensa comentários, quase. vão dizer que é impossível viver o dia a dia em nossa sociedade. é verdade. mas podemos aprender o que realmente vale a pena com os índios. até que ponto vale a pena acumular dinheiro? vocês eu não sei, mas eu não quero ter muita grana. quanto mais dinheiro, mais tempo se gasta pra administrar e manter as contas. e maior o número de necessidades. aí, adeus passeios ao sol, adeus cervejinha com os amigos, adeus finde na serra com a namorada, adeus leitura de monteiro lobato pros filhos. há alguma diferença prática real entre um bmw e um corsa? ficar rico é um pé no saco. [a menos que se ganhe na sena, sem precisar trabalhar.] como eu gosto muito de passear no bonfim e tomar sorvete de café com caramelo, já deixei de lado esse idela ridícula de enriquecer a custo da própria vida. não precisamos todos virar hippies, mas essa compulsão por acumular pode ser bem diminuída. [[vou dar o exemplo dos índios canadenses, de quem gosto muito, porque eles conseguiram ter força política, força cultural e força econômica. eles têm senadores, deputados, secretários de governo índios. agora, eles conseguiram isso através de quê? do processo educacional. e eles têm ecoturismo, têm uma companhia de aviação, têm uma cultura muito forte e estão resgatando a língua indígena, ou ao menos registrando através da informática. nem por isso deixaram de ser índios.]] essa é praqueles pensando que os índios vão perder sua cultura se forem integrados à sociedade branca. não apenas não vão, como ainda a nossa cultura vai ficar enriquecida com a deles. ser índio não é viver no mato, é manter as tradições, como as festas, a língua, o respeito à natureza, os ensinamentos do pajé. quem duvida que isso seja possível, deveria visitar alguma cidade colonizada por alemães no rio grande do sul. os imigrantes mantiveram sua cultura quase intacta. meus avós ainda misturam alemão com português e comem chucrute com lingüiça. por quê os índios não podem fazer o mesmo? tendo as condições, escolas e apoio logístico, podem se integrar à nossa cultura sem perder de vista seus valores. [[alguém podia perguntar assim: "mas então vocês estão com raiva do branco?" e a gente diz assim: "não, não estamos com raiva do branco, porque esse mundo aqui vive uma situação que não vai dar certo, baseado em todos esses valores que a gente falou aqui". se continuar assim, não vai dar certo. quando a gente pulou esse muro e viu esse mundo desse jeito, percebeu que era um mundo errado. então, o que queremos? queremos que o chamado homem branco respeite o mundo indíngena.]] eu não diria que os índios precisam de nós. nós precisamos deles. há mais de 5 mil anos o homem persegue o ideal de progresso e acumulação, seja pela conquista de territórios, pilhagem, exploração dos povos, ou simplesmente se corrompendo, buscando formas ilícitas de ganhar dinheiro. alguns até mesmo enriquecem de forma lícita, sem poluir o meio ambiente, pagando bons salários aos funcionários. mas de fato não está dando certo. nunca deu. sempre passamos fome e tivemos fé nas mentiras que nossos pais e professores contaram sobre o progresso. e agora percebemos que nunca precisamos de bombas nucleares pra vaporizar o mundo; ele vai implodir. a busca da riqueza material a todo custo é a causa desta implosão. ou paramos com isso agora, ou afundamos todos juntos em um mar de poluentes fedorentos e desnutridos subhumanos. mas globalizados e enxutos, né, michel camdessus? mas isso todos vocês sabem, eu não sei porque fico repetindo. |
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