Notas de um antropólogo cansado
Parte 3

por Rui Alão
1.

"Logo que chegou, o tal moço me confiou um punhado de coisinhas. Estava muito debilitado e tinha os pés enregelados. Tentei tratar do viajante durante alguns dias, mas as dificuldades em lidar com ferimentos eram muitas, já que era inverno e passávamos a maior parte do dia no escuro. Além do mais, as coisas que ele carregava eram inúteis para a cura que necessitava."

"Lá pelo quinto dia ele parou de movimentar-se e tinha o rosto como que paralisado numa incrível expressão de dor, uma dor interna. Devia estar sangrando por dentro; às vezes cuspia um sangue escuro e quase pastoso. Não resistiu ao sexto dia e entregou-se."

"Era um homem grande, de uns vinte e poucos anos e de traços orientais imprecisos. Tinha a pele escura, como a cor da madeira molhada. Com certeza havia viajado muito para chegar onde estou. Tinha gestos contínuos e suaves, que não estou certa em atribuir à sua origem ou ao seu cansaço extremo. Falava de um jeito manso, pausadamente, mas guardava alguma raiva de algo que não entendi. Houve noites em que ouvi durante horas palavras arredondadas e incompreensíveis. Alternava entre a fala calma e ritmada e arroubos de extremo nervosismo, nos quais pegava seus objetos e os sacudia, como se estivesse encenando algum ritual furioso. Às vezes o sono ou a exustão o alcançava justamente numa dessas ocasiões, e ele despencava como uma geleira. A língua que usava era de muitas vogais e tinha um som bonito, que ele alongava para acompanhar os seus gestos; ele a enfatizava com expressões faciais, na esperança que eu o compreendesse, mas nossos idiomas eram tão distantes que só pude extrair de sua história o essencial."

"Nos primeiros dias em que mantivemos contato, me explicou que vinha do nascente e que trazia objetos de grande valor para os homens, não pelo ouro que continham, mas pelo conhecimento que podiam trazer as tais coisinhas. Aos poucos, percebi, mesmo no meu isolamento, que eram coisas estranhas, sem nenhum atrativo, quase nenhuma cor e de qualidades às vezes incompreensíveis."

"Notei que algumas eram enfeites de gosto estrangeiro, outras eram para o uso doméstico; o resto não fez para mim qualquer sentido. Umas poucas eram de comportamento um tanto mágico; pelo menos para mim, que suspeito mágico quase tudo o que não conheço."

2.

"Havia, por exemplo, um tecido que, ao invés de esconder o corpo, o revelava, esplêndido e sem as marcas dos anos. Coloquei-o sobre mim e vi parte de meu corpo, sedoso e fresco, como se fosse verão e não houvesse as marcas que o inverno rigoroso deixa numa mulher. O tecido, no entanto, não modificava em nada o toque: se não havia mais as fendas deixadas pelo frio, era um truque que enganava unicamente a visão: os outros sentidos continuavam percebendo tudo tal como era na realidade. Se houvesse algo agora que enganasse também o tato, seria o bastante para aceitarmos que a realidade fosse outra..."

"O mais incrível objeto entre eles, certamente mágico, é um que tem, como nós, o poder da visão, e enxerga o mundo que passa ao redor dele. É certamente feito de água escura e funciona como quando vemos a nós mesmos num lago, só que a superfície dessa água pode ser deixada em pé e até de ponta cabeça, sem derramar. Mas a sua identidade é o que mais me deixa confusa. Todos os outros objetos são o que são: velas, tigelas, vasos de metal. Olhamos para uma tigela e vemos a tigela, olhamos para um vaso e vemos apenas o vaso, olhamos para esse objeto e vemos nele outras coisas; aliás, já percebi que podemos ver tudo nele, exceto ele mesmo. Já me vi algumas vezes encarcerada e espremida dentro dele, como se coubesse em seu pequeno tamanho e em sua planura absoluta. É como se essa estranha coisinha gravasse momentaneamente dentro de si as imagens de tudo o que vê, e as reproduzisse perfeita e imediatamente. Ignoro sua utilidade, já que não se pode deixar uma imagem guardada nele para ser admirada depois..."

"Outro item estranho era uma bolsa com um líquido dentro que era capaz de curar qualquer ferimento causado por arma, palavra ou atitude. O líquido deveria ser colocado, explicou o viajante, não no ferimento mas em sua causa, seja ela qual fosse. Nunca cheguei a testa-lo, mas acredito cegamente em sua eficácia, já que faz muito mais sentido remediar um mal em suas origens que em seus fortuitos efeitos. "

"Havia outro objeto que não tem outra utilidade senão a de ser solto e dar voltas sobre si mesmo, como um cachorro que tenta alcançar o próprio rabo. E fica assim até cansar-se, depois cai exausto. Não fica em pé a não ser girando. A utilidade prática deste objeto ainda é para mim um mistério, mas suponho ser imensa, já que dispõe de uma espécie de vida sobrenatural enquanto gira. Afinal, que outro objeto pode se orgulhar de possuir esse dom de equilíbrio? A forma efêmera de vida por que passa é que me intriga... um equilíbrio tão frágil e tão agitado que só pode sustentar-se por alguns instantes. Tenho me distraído nesse inverno que parece interminável girando a tal coisa com esperança que ganhe um vida mais perene, mas seu impulso vital é, como já disse, estranhamente fugaz. Acho que me afeiçoei a ele, talvez por ser a única coisa que me lembra algum tipo de vida, além da que trago agora em mim."

3.

Este relato encontrei no diário de uma moça que tinha aparência tártara, num casebre às margens dum lago congelado, a uns três dias de meu destino. Tentei traduzi-lo da melhor maneira possível e pulei algumas partes que consistiam de delírios, causados certamente pelo ópio ou pelo álcool, pois encontrei indícios de ambos. Espero que minha tradução não tenha alterado seu conteúdo, já que temo tê-lo contaminado com meu jeito de escrever.

O que mais me impressionou foi a posição em que achei a moça, encolhida, deitada de lado no chão, grávida de uns quatro meses, ao lado de outro corpo, certamente o do viajante que menciona, os dois ainda congelados. Perto deles havia uma enorme bolsa, feita do couro de algum animal que desconheço, na qual encontrei um bonito espelho de metal, alguns brinquedos (piões, bonequinhos e marionetes), tecidos finíssimos, provavelmente chineses, quase transparentes, e uma bolsinha com um estranho líquido que mais tarde descobri ser um ácido fortíssimo e corrosivo.

Decidi enterrar seus corpos ao lado de duas cruzes que fiz com a madeira do casebre, apesar de não saber se por estes lados conhecem as leis de Cristo. Que descansem em paz.

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