Trabalho
por Dante Sasso
        O papagaio falou a tarde inteira. Coloquei comida na gaiola:
sementes de girassol e painço. Para as samambaias e as violetas, dei água.
Para o cactus no vaso de barro não dei nada; na verdade teria que dar um
pouco de sol, mas com a chuva que já durava semanas ia ser difícil. Depois
peguei o jornal e uma caneta, ajeitei-me no sofá e risquei os possíveis
clientes na seção policial. 

        A voz dela no telefone era amarga, doída:
        - Quem me deu o número foi um amigo seu...
        - Não tenho amigos. Foi um cliente. 
        - ...o senhor me desculpe, eu nem sei como tive coragem de ligar...
estou tão confusa, que desgraça, o senhor não imagina...
        - A senhora não está sendo objetiva.
        - ...me desculpe, me desculpe, é que estou nervosa, tenho chorado
muito ultimamente... durante os últimos dias eu... eu fiquei criando coragem
para ligar e saber se o senhor pode fazer um, ahn, trabalho, eu conheço este
seu amigo...
        - Cliente, dona Graça. Sejamos diretos. Conheço sua tragédia e sei
como me encontrou. Também sei o que a senhora quer. Eu faço o trabalho. Mas
o caso do seu marido está complicado. Só terei algo concreto em uns dois
dias.
        - E qual é o preço para fazer este, ahn, trabalho?...
        - A senhora vai saber, dona Graça. Eu entro em contato.
Desliguei o telefone. Olhei pela janela, ainda chovia forte. Vesti uma blusa
de lã, casaco impermeável, botas. Conversei um pouco com o papagaio, depois
liguei o rádio, ele gosta disso. Ainda escutava sua voz imitando o locutor
enquanto eu descia as escadas do prédio. 

        Dei uma volta pela cidade, falei com muitas pessoas, traficantes,
bandidos, meretrizes, bagaceiros em geral. Consegui a notícia que queria,
foi só intimar as pessoas certas. Percorri os lugares de sempre, mas a chuva
tornava tudo ainda mais desagradável: vilas e becos lamacentos, barracos
imundos, bares infectos, a escória. Já não tenho mais estômago para agüentar
este refugo social. Mas é onde consigo as informações. Quando eu estava
saindo de um edifício desocupado que serve como ponto de tráfico de drogas
no centro da cidade, vi nos corredores emporcalhados um mendigo aleijado e
uma prostituta trepando, os dois amontoados em um canto, envoltos em papelão
e trapos. Ele gemia muito mais porque o salto do sapato da puta perfurava o
coto da sua perna do que por prazer: os uivos eram obscenos, de alguém
doente e que há muito deveria ter morrido; o sangue do seu membro mutilado
manchava o vestido e as pernas dela, que permanecia apática, sórdida,
olhando as paredes como se visse nada. Pareceriam dois animais, se animais
pudessem ser tão nojentos. Apressei o passo e saí dali.

        Cheguei em casa à noite, o papagaio repetia incessantemente o refrão
de uma música. Desliguei o rádio, troquei a água do pote e coloquei mais
painço. A gaiola estava imunda. Caminhei até a cozinha, comi duas maçãs e um
pedaço de pizza fria, tomei uma garrafa de vinho e fui dormir. Antes, abri a
persiana e observei a chuva, ela não dava trégua. 

        Liguei para dona Graça no dia seguinte:
        - Consegui os nomes. Já posso fazer o trabalho.
        - E como faremos? - ela perguntou, receosa.
        - A senhora me diz como quer, nos encontramos em algum lugar, eu os
pego, esta parte é a mais complicada. Depois é tudo comigo, a senhora
assiste, dá algum palpite, como quiser. Amanhã às seis horas eu sei onde
eles vão estar. O meu dinheiro vem em um envelope pardo grande. 
        - Eu não tenho certeza...
        - Trabalho com o tempo, dona Graça. Daqui a alguns dias a polícia
também vai achá-los. Minha proposta vale vinte e quatro horas - eu disse,
desligando.
        Ela ligou meia hora depois.
        - E então, já sabe como vai querer? - perguntei.
        - Já... - ela disse. Respirava com tensão, gaguejava.

        Peguei dona Graça no horário combinado, em frente a uma igreja. Era
uma senhora idosa, de cabelos escuros. Uma mulher fina, devia mesmo ter
muita grana, afinal, meu serviço é caro. Parecia pensativa, mas deprimida,
tinha olhos pesados e vestia preto, como convém. Coloquei o envelope pardo
sob a camiseta, junto ao abdômen.
        Dirigi em silêncio. Ela também não falou muito, perguntou
educadamente se poderia fumar dentro do carro, não me olhava no rosto,
assistia às ruas. Estava mais abatida do que assustada, ou excitada, com a
situação.
        Paramos em uma rua escura, num bairro pobre. Esperamos.
        Em poucos minutos chegou um carro preto, saíram dois homens morenos
e magros, como me disseram.
        Ela ficou observando sentada no banco do carona, curiosa. O preço
também incluía a captura. Desci da caminhonete com uma corrente nas mãos, a
chuva persistia, mas agora estava mais fraca, irritante. Andei curvado entre
as árvores, já começara a escurecer. Aproximei-me deles pelas costas,
enquanto abriam o portão de uma casa. Bati com o cadeado na nuca do primeiro
e ele caiu. O outro deu mais trabalho, tentou sacar a arma mas eu fui mais
rápido, prendi-o pelo pescoço e dei uns socos no seu rosto. Pus os dois na
carroceria, amarrados. Ainda dei mais uns golpes de corrente na cabeça deles
para desmaiarem.
        Fomos para a estrada, dona Graça não parava de fumar e olhar os dois
homens pelo vidro traseiro. Não falávamos.
        Parei o carro no acostamento, carreguei os dois por uma trilha no
meio do mato. A chuva fina dificultava o trabalho, tornava a terra
escorregadia, difícil de caminhar com o peso deles e ainda o galão. Com
algum esforço, consegui arrastá-los até uma clareira. Derramei toda gasolina
sobre os corpos. Os dois homens acordaram e debatiam-se, apavorados. Dona
Graça me observava, protegida por uma capa de chuva.
        - Quer fazer? - perguntei a ela, sereno. Isto também fazia parte do
preço.
        - Não... - ela sussurrou. Não parecia ter muita certeza.
        - Não quer perguntar nada a eles, os motivos, como foi? - insisti.
        - Não. Pode acabar logo com isso - ela disse, por fim.
        Dona Graça tinha olhos verdes enormes e respirava mesmo com
dificuldade. Por um momento ela pareceu estar chorando, mas talvez fosse
apenas a chuva em seu rosto. Uma mulher elegante.
        O pavor pelo estrondo seco da primeira chama, do primeiro tiro ou do
primeiro corte de navalha misturado com as convulsões e lamentos das pessoas
que estão prestes a morrer é muito maior na face dos clientes do que na
minha. Eu não me importo muito com isso. Talvez seja um defeito, uma falha
do meu caráter, esta compaixão que nego aos agonizantes. Mas a culpa é
sempre indiscutível, e essa é apenas uma observação que faço sem me queixar.

        Deixei dona Graça perto de um posto de gasolina. Ela não olhou pra
trás, nem agradeceu, assombrada que estava. Vi-a afastar-se lentamente,
acender um cigarro e ficar ali parada, fumando na chuva. Acho que ficou
satisfeita. Depois sumiu na fumaça e na água.
        A caminhonete roubada eu deixei queimando em uma estrada de terra
nos arredores da cidade. Peguei um táxi e voltei pra casa.

        Quando entrei no apartamento, vi que o papagaio dormia com apenas
uma pata no poleiro, a outra encolhida, oculta nas penas. Olhei na
geladeira, não havia nada para comer. Fui até o quarto e guardei o envelope
com o dinheiro. Antes de me deitar resolvi limpar a gaiola, troquei o
jornal, a notícia riscada à caneta sobre o assassinato do marido de dona
Graça ficou virada pra cima. Amanhã vai estar todo cagado, pensei. Pus mais
um punhado de sementes, água. Olhei pela janela, a chuva estava mais forte.
Em um canto da sala, o cactus murcho. Fui dormir com fome.

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