Regressão

Por Dante Sasso

1a. sessão

"o princípio da escolha implica que a 'vítima' de um estupro está escolhendo ser estuprada, e que o estuprador está escolhendo estuprar. concordam ambos em produzir o resultado final."

will schutz

 

talvez seja a mesma sensação do trauma uterino. em vez de assepsia, mato ao redor. a respiração ofegante próxima, vejo a cena distraído: movimento rápido, a rede cai sobre a presa. carregamos pela mata o corpo já esfacelado do homem. eu dou risadas, excitado. meu companheiro não tem dentes na boca, mas ao redor do pescoço, um bizarro colar de marfim. ele também ri e me olha com surpresa - estarei eu interferindo nas ações do tempo? - chegamos a uma aldeia. mulheres e crianças horrorosas avançam sobre nós, retalham e cozinham a carne em um tacho de misturas ferventes e cheirosas. os homens, eu inclusive, a comem crua mesmo, envolta apenas em folhas de sabor picante. depois colocamos fogo nos ossos e cabelos, há danças e fumaça até a noite. mas começo a achar estranha minha benevolência diante da situação, algo que eu precisava conter; então tomo conta. devemos estar perdidos entre as grandes navegações. imagino-me: personagem de uma edição raríssima das viagens de drake, um simples anagrama de caliban. o monstro de "a tempestade" nada mais é do que uma piada interna: os escritores europeus dessa época eram muito mais espertos que nós. à explosão das conquistas, algo tido por eles como possível, puseram-se a especular o que haveria de sociológico e antropológico neste novo mundo - o arquipélago de galápagos, hitler e semitismo, tudo viria depois.

um dos selvagens ao meu lado, nervoso, grita para os guerreiros, sucum-babuê, sucum-babuá, e aponta para mim. eu estive absorto e nem percebi, havia colocado todos os anéis e vestido a camisa do explorador europeu, nossa janta. devo ser uma espécie de traidor.

sou empalado e comido ainda naquela noite, temperado com ervas exóticas, em alguma floresta da américa central.

2.a sessão

"você é deus em seu universo. você causou. você fingiu não tê-lo causado para que pudesse brincar ali. e você pode se lembrar de tê-lo causado toda vez que quiser."

werner erhard

de repente me vejo com uma longa vara na mão, um campo muito colorido, colorido demais. sinto-me em uma viagem de ácido, vejo vacas, flores, moinhos e uso um macacão de brim sujo e chapéu: não devo estar muito longe de amsterdam. desta vez não demoro a atinar. o sol bate na testa e percebo: toco um rebanho de gado leiteiro, vejo sobre a estrada de terra um campo coberto de tulipas vermelhas: o passeio é um arco-íris ao contrário cortando o caminho. devo mesmo estar viajando. a propriedade perde-se de vista. ao longe vejo outras vacas na margem de um córrego, vacilantes, com medo da travessia. e há também rapazes que pulam o rio com a ajuda de varas iguais à minha, devem ser aqueles jovens mochileiros que compram cogumelos no magic mushroom do centro da cidade e vêm curtir sua viagenzinha no campo. tudo ok, desde que não molestem meu gado. caminho até lá, guiando as vacas sem muito esforço, o sol é forte mas isso me faz bem, eu o aproveito com - penso em dizer, com gana, mas paro e penso, gana é bastante latino, espanhol mais precisamente, sou agora alguém na pele de quem nem conheço e tenho que saber mais sobre a minha alma, minha essência, que não tem nacionalidade - então devo ser parcial: eu aproveito o sol com satisfação. nem me dou conta, e volto: acho que é preciso cuidado com algumas interpretações. numa outra vez - como se a regressão fosse um hábito - ouvi freud dizer: "ora, muitas vezes um charuto é apenas um charuto!" - será que freud também era gay? sim, porque uma boa parcela da população homossexual também cheira cocaína, como ele, embora isso não configure uma relação direta. farei cálculos mais precisos, mas acho que uma teoria aprofundada explicaria muitas coisas, apesar de não provar nada: geralmente são assim as teorias. só lamento não ter entendido o que freud disse no original, ali, na bucha. alemão é uma língua fodida, ainda há declinações, neologismos freqüentes e o escambau. mas é bonita. se bem que o holandês é bem mais fácil, ao menos este agradável dialeto do norte.

aproximo-me dos meninos, nenhum deles caiu na água. precisam atravessar o rio daquele jeito, olho longe e descubro: hoje isso é uma tradição, mera brincadeira: pular o rio com um vara. no horizonte eu não vejo passagem nenhuma entre as propriedades, mas também não vejo cercas. então é assim que delimitam seus terrenos, utilizando os pequenos trechos de água, malditos colonos, será preguiça de construir pontes? e eu ainda preciso atravessar daquela maneira, isso é uma necessidade no início do século XVIII. corro, gordo e feio, lanço-me no ar com a vara, enfio-a no rio, ela dobra, caio, quebro o pescoço, morro - ridículo. as vacas me olham, nenhuma pára de mastigar. animais com certeza não reencarnam.

3a. sessão

"odeio citações. diga-me o que sabes."

ralph waldo emerson

impressionante, olhando para estes dois meninos lembro na hora dos bustos que ficam sobre a porta da biblioteca da minha cidade: petrarca e boccaccio. caminho pelas ruas abraçado a eles, este filho da puta da bodega faz um vinho excelente. paro, ajeito o pano sobre a cabeça e grito, voz enrouquecida de frio e torpor: palmas para o taberneiro! eles caem na risada, dois passos meus para a esquerda, um para a direita, caio com o rosto no chão da rua. as gargalhadas tornam-se ainda mais debochadas, palmas para o taberneiro, filho de uma cadela! meu nariz está inchado, ainda mais torto, minha testa também machucada. limpo o sangue nas vestes vermelhas. por que os desgraçados me pintam com louros na cabeça? nunca entendi. só porque procuro os modelos greco-latinos, a antigüidade clássica, isto não quer dizer que quero tudo deles! por deus, e me perdoe, vergílio, se és pagão e não acredita neste deus para nunca entrar no reino dos céus, este papo todo de virtude é apenas ficção! quem crer em tamanha egotrip que ando escrevendo não sabe nada sobre a arte. bacon, maldito inglês, desenvolve esta escola empírica para isso, o conhecimento é muito mais que razão e autoridade. proclamo a observação, malditos, a experimentação como forma de desbravar os entendimentos do mundo! caio para trás novamente, não de bêbado, mas porque o sangue que escorre da minha cabeça tapa a visão. pobre velho, eles dizem, erguem-me, um em cada braço, e vou sendo arrastado até a estalagem.

enquanto ele desmaia na cama eu fico acordado, olhando o teto. este borracho - ah, a latinidade me sufoca e me impede de ser menos preciso - com tanto talento, deitado aqui, bêbado e jogado à própria sorte. e meus amigos - poetas menores? - lá fora, ainda preparando-se para crescer. mas a história - com certeza ouvirei este papo novamente - nem sempre é justa: basta revermos seus caminhos, sabemos o que vamos nos tornar, pobre gente. de que me vale tanto destino, um futuro grandioso impresso em papel que se esfarela se agora em vida sou um miserável, e passarei assim para a eternidade? sossego ao conforto fácil: pelo menos criei, suprema glória a quem isso interessa; posso morrer em paz - claro, se antes concluir minha travessia: danação, expiação, beatitude. volto a ele, durmo e tenho dois sonhos: em um deles está o demônio, descubro que ele é todo feito de gelo. no segundo sonho agarro com força a mão da pobre finada beatriz.

4a. sessão

"e saberás a verdade, e a verdade tornar-te-á livre."

joão, 8:32

meus cabelos compridos e a barba não ajudam. um calor abafado e eu aqui, escondido atrás de alguns arbustos, acocorado, coceiras por todo corpo, insetos ao redor - se permito que vejam minha altura, o chefe do bando me abstém de pão e vinho por dois dias - mas eu tenho meus truques, não passo fome nem sede. esperamos algo, todos com lenços a cobrir os rostos. demoro a ver: uma comitiva de cavalos na frente, depois outros em ritmo mais lento, a retaguarda. os guardas depositam várias caixas de madeira no chão, parecem ser pesadas, chumbo? - ou outro metal?, interfiro - os homens das primeiras montarias olham ao redor da clareira, procurando alguém. apago o cachimbo. atacamos. as cimitarras sossegam, apenas nós em pé. nesta languidez pós-combate, observando os corpos ao redor, relembro um antigo professor de latim. ele dizia: a filologia nos prova que a história das culturas é injusta - flashback - um deles é culpar a palavra haxixe por dar origem ao vocábulo assassinos, de forma pejorativa. a palavra em árabe, haxix, relacionava-se aos assaltantes que espreitavam nas estradas para roubar os comboios de soldados com os bens da realeza, principalmente da realeza. geralmente estes bandidos atacavam os grupos de soldados com crueldade, e quase sempre matavam todos. bem, a palavra virou haschisch no francês, haxinxins, na sua raiz: assassinos. devaneio dele, não meu. o fato é que ninguém nunca soube o que fiz dos treze aos trinta anos. e algo em meu espírito diz que morrerei por uma boa causa. isto me alivia - apesar de eu me achar cordato demais, um verdadeiro imbecil. mas tudo bem. ninguém é perfeito.

o bando revira os objetos saqueados, muitas moedas de ouro, alguns cavalos ainda restam por ali, alheios. a riqueza fascina, mas não é o principal. o melhor mesmo é sentir-se humano, a adrenalina no sangue, o risco. por isso podemos ser perdoados, não, pai? moisés não deveria ter escrito nada nas pedras, o destino a nós pertence. sou expulso do bando naquela noite, já era hora mesmo de rever minha mãe, velha virgem e sofrida. mas antes de partir, só de sacanagem, transformo todo vinho roubado em água.