VELÁSQUEZ E A TEORIA QUÂNTICA
DA GRAVIDADE
Por Jorge Furtado
"O que Deus fazia antes de criar o universo?", perguntou Santo Agostinho. Provavelmente
escrevia alguma bobagem para a internet e o serviço ali, parado. Tudo
bem, não foi por muito tempo (que, aliás ainda nem existia). Ele
logo desconectou foi lá e pá, criou o universo assim como nós
o conhecemos, só um pouco mais moço e mais magro. O universo tem
se expandido desde então mas parece que nada de muito dramático
vai acontecer na vizinhança nos próximos dez milhões de
anos. O fato é que o tempo passou a existir e as coisas seguiram em frente
e para os lados.
O universo move-se segundo leis científicas, dizem os cientistas garantindo
os seus empregos. Se uma experiência feita em determinadas condições
for repetida nas mesmas condições em qualquer lugar do universo,
até mesmo em Curitiba, o resultado deve ser o mesmo. Analisando estas
experiências os cientistas elaboram as leis que regem o universo e caem
no vestibular. Ao contrário da arte, onde uma descoberta em nada altera
a descoberta anterior, na ciência cada nova lei substitui as outras, cujo
o destino é o lixo, sob risadas. Como éramos burros!
Atualmente o universo é explicado através de duas leis: a mecânica
quântica, que se preocupa com coisas muito pequenas, como átomos
e seus elétrons, e a teoria geral da relatividade, interessada em coisas
muito grandes e muito distantes, galáxias, buracos negros e supernovas.
As leis da mecânica quântica explicam a fusão nuclear e o
fato de a lagartixa conseguir ficar grudada num vidro. As leis da relatividade
explicam a expansão do universo, a gravidade e as órbitas dos
planetas. O problema é que, na melhor hipótese, uma das duas está
errada, são incompatíveis. Talvez as duas estejam erradas, mas
isso não ajuda nada.
Planetas continuam girando e lagartixas continuam caminhando pelos vidros, indiferentes
à agonia dos cientistas que buscam desesperadamente uma teoria quântica
da gravidade, uma teoria única que explique tudo, lagartixas e supernovas.
Eles já pensaram até em resolver a questão na porrada.
Um físico quântico e um físico relativo seriam colocados
num ringue, em Las Vegas, em doze assaltos para unificar o título. O
juiz seria o Stephen Hawking, que tocaria o gongo com a boca, usando um programa
especialmente desenvolvido pela Microsoft. Enquanto não marcam a data
do evento, a dúvida continua.
Diz a lenda que Einstein descobriu um conceito fundamental da sua teoria da
relatividade enquanto andava de elevador. Parece que ele olhou para a lâmpada
do elevador e pensou em como a luz daquela lâmpada se deslocava dentro
do elevador enquanto ele subia, ou descia, sei lá. A inspiração
de Einstein deve-se muito à timidez de sua acompanhante no elevador.
Ela não puxou conversa sobre o clima, ficou aquele silêncio, ele
ficou constrangido, olhou para cima, viu a lâmpada e organizou todo o
universo. O fato dele estar pensando naquilo todo dia há trinta anos
também ajudou.
Digo isso porque uma observação muito simples e capaz de contribuir
decisivamente para a elaboração de uma teoria quântica da
gravidade me ocorreu enquanto examinava uma reprodução do quadro
"As Meninas", do Velásquez. Você sabe qual é, aquele do
pintor num estúdio com várias meninas, todos de frente para o
rei e a rainha, que só aparecem no fundo, no espelho. Onze pessoas e
um cachorro estão no quadro. A menina que ocupa o centro do quadro é
a infanta Margarida Teresa, filha de Felipe IV e Maria Anna, os reis que aparecem
no espelho. Duas damas de honra ladeiam a infanta: Dona Maria Agustina de Sarmiento,
à esquerda, ajoelhada, oferece-lhe uma xícara de chocolate; Dona
Isabel de Velasco, à direita, de pé, curva-se em respeito aos
reis que chegam. Velásquez, o pintor, está bem à esquerda
do quadro, de pé, segurando seus pincéis. Na extrema direita,
uma anã maravilhosa e um menino que põe o pé sobre um cachorro.
(Picasso fez vários estudos das Meninas e desenhava a anã com
meia dúzia de linhas). Em segundo plano, uma freira e uma mulher de negro.
Ao fundo, além do espelho que reflete os reis, aparece um homem de pé
na escada, Dom José Velásquez, o tesoureiro da corte.
O rei e a rainha, o pintor, o tesoureiro, a mulher de negro, a infanta, a dama
de honra que se curva e a anã estão olhando diretamente para a
câmera, isto é, para o observador do quadro. A infanta foi fixada
em meio a um movimento, curvando-se para os reis que chegam e aparecem no espelho.
Ora, uma teoria quântica da gravidade deve levar em conta... e foi neste
momento que chegou a Silvaninha e me perguntou se eu tinha devolvido a fita
da Guta. Que Guta? A filha da Dona Inês. Que fita? A fita com o filme
super-oito que ela deixou na tua casa no dia do aniversário do Breno.
Ela deixou a fita? Deixou, tu disse que queria ver, ela deixou. Tu viu a fita?
Acho que não. Cadê a fita? Deve estar lá. Procura e devolve,
era a única cópia, ela já me deu um toque que queria a
fita, perguntou se tu já tinha visto. Eu procuro, deve estar lá.
Então tá.
Voltei a olhar para o quadro quando a Silvaninha saiu, mas só conseguia
prestar atenção no rosto daquela anã. Não tinha
mais a menor idéia de como o quadro poderia contribuir para a melhor
compreensão do funcionamento do universo. Em virtude do exposto, deixo
de enviar meu artigo sobre a teoria quântica da gravidade. Em seu lugar,
mando-lhe um soneto do poeta português João Pedro Régio
(*Vila do Conde, 1904, + Porto, 1965), intitulado "Dois Homens". Obrigado e
desculpe, talvez para o próximo número. Era isso.
DOIS HOMENS
"Vejo um homem a espiar frente à cortina
E imagino a paisagem que ele vê
Não me sabe, não me vê, nem imagina
A paisagem que imagino que ele vê
Finjo ignorar o homem que me espia
Mãos no bolso, paletó, velho, coitado
Controlando os vizinhos passa o dia
De pé, parado à porta de um sobrado
Dois homens no caminho à minha frente
Um jovem na janela, olhar distante
Um velho na calçada, terno preto
Cruzo a cena como um figurante
Nem sabem que eu existo e de repente
Para sempre estão presos num soneto".