Ficção chuvosa sem roteiro ou pretensão
Por Lafaiete Rozinsky
Era um daqueles dias cinzentos de chuva. Em casa, sem nada, sem saco, sem ela,
sem vontade de ir ao trabalho, de fazer a barba ou sequer de levantar da cama,
fiquei dando uma olhada na televisao e estava passando um filme
muito chato com a Julie Andrews e o Jack Lemon, um casal de idade em que o cara
passa por uma crise ao completar 60 anos. Década de 80, com certeza.
Chato, previsível e piegas como boa parte de tudo o que se fez naquela
época. Todo ele um desastre, até que veio uma cena em particular.
O cara acorda no meio da noite, tem uma tremenda crise de choro e vai para uma
bicicleta ergométrica com o intuito de pedalar até morrer de ataque
cardíaco. A mulher o encontra umas horas depois, banhado em suor, chorando
e ainda pedalando. Ele chora, diz a ela o que o atormenta, ela o acolhe com
um abraço delicado e o conforta com voz macia, e o abraça e o
acalma, e age como as boas e raras mulheres legais agem quando vêem um
cara destroçado. Emprestam um pouco de sua força lendária
e inigualável. Era eu. Éramos nós. Minha crises de depressao,
meus choros imotivados, e a forma suave e acolhedora com que ela sempre esteve
ali para mim, com que ela me abraçava e me fazia dormir, e como somente
ter aquela possibilidade fazia a vida mais leve mesmo em meio a tempestade.
E me dei conta de que se um dia eu fizer 60 anos (sinceramente espero morrer
antes), ela nao estará mais lá no meio da noite para me confortar,
e nao terá para mim aquela palavra de carinho que sempre
teve. Estará talvez em outro lugar, com outra pessoa, talvez com filhos,
que podem até ter os nomes que havíamos planejado para o improvável
dia em que tivéssemos os nossos.
E aquilo me doeu tanto, me entristeceu tanto que até
mesmo o chuvisco lá fora e o frio de rachar me pareceram melhores do
que ficar ali vendo aquilo e pensando. E saí a caminhar pelas ruas cinzas
e pedregosas dessa cidade que ainda não percebeu estar em ruínas.
dessa cidade em que os arranha-céus se erguem monstruosos, como as costelas
aparecendo em um cadáver em decomposição. E depois de horas
de chuva, resolvi parar em um café para pedir um cappuccino. Um lugar
triste, paredes revestidas de madeira velha, pessoas velhas com os rostos
paralisados, como se também estivessem revestidos de madeira. Uma televisão
com chuviscos na qual passava um jogo de futebol a que ninguém assistia.
E do meu lado, vi um casal de velhos. Ele usava um terno fora de moda e um sobretudo
cinzento pesado. Ela, gorda, enrugada, com óculos grossos e cara de buldogue,
fora quem havia ido buscar os pratos no balcao e sentou-se em frente a ele.
Comiam alguma coisa que pareciam panquecas sebosas. Nao se olhavam, nao se falavam,
nao trocavam olhares confidentes. Mesmo para o meu olhar de curioso que via
as coisas superficialmente, de fora, pareceu evidente que nao havia intimidade,
nao havia afeto, nao havia nada senao hábito naquela refeiçao
comum de um casal evidentemente casado. Havia até certa hostilidade entre
eles. Uma mal disfarçada raiva, um ódio surdo. Pareciam ter vivido
juntos toda sua vida e isso ainda nao era suficiente
para fazer com que se falassem. E entao, enquanto comia uma empada gordurosa
e tomava meu horrível cappuccino aguado, eu os olhava e pensava que pelo
menos nós dois nao chegaríamos a esse ponto. Que eu nao teria
na minha triste e provavelmente precoce velhice nem o melhor nem o pior. Nos
meus 60, ou 50, talvez até nos meus 40 já seja um velho, eu nao
teria nem a companhia dela no meio da noite para me levar de volta à
cama e me deixar chorar no seu ombro por sentir o tempo passando e a morte se
aproximando, e nao teria também aquela convivência hostil e solitária,
aquela presença tolerada, aquele ódio silencioso dos que apenas
se aturam um na vida do outro. Nossos últimos encontros haviam sido exatamente
assim, então do que eu sentia saudade? da imagem ou do hábito?
das discussões intermináveis? do sexo burocrático?
Quando os velhos se foram enfrentando a chuva, eu ainda não sabia responder.
Já não comia.
nem pensava.